Malabarismo de almas virtuais

Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro
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3 min readMay 15, 2019

As pessoas não sabem mais lidar com papeis. Pena e tinta são inimigos de uma geração que cresceu acostumada com a simulação de folha branca dos softwares. Não diria nem que é uma geração que tem problemas com desenhar as letras, porque a sua gastura com o registro não nasceu das teclas, mas da realidade física.

E a contaminação tecnológica é tamanha que gente que nasceu sob o regime dos datilógrafos já se acostumou e se apegou à virtualidade de toda mensagem. Agora todo registro de vida: escritos, áudios e vídeos, são virtuais. Tudo se tornou eternamente reparável.

Fala-se muito de uma sociedade de vigilância pelas redes sociais, mas observa-se na verdade uma sociedade de esconderijos. Se nada é físico, nada é fato, nada é verdade. A racionalização barata deste argumento foi tão longe que até a Terra pôde voltar a ser plana, ou um cilindro, ou um donut, qualquer coisa.

Porque se não gostamos hoje, apagamos e colocamos de novo amanhã. Não há mais motivos para se pensar muito, não há mais consequências para este eterno jogo de simulação que vivemos. Se não der certo, começamos de novo, se precisar, achamos até outro planeta. Afinal se tanto podemos escrever e desescrever nas redes, porque não poderíamos achar uma casa nova para tanta gente antenada e conectada.

O que ontem foi paixão, amanhã é ódio. Nunca foi tão forte a profecia de George Orwell, na sua ficção que assistimos virar realidade, sobre o ano de 1984 que chegou com trinta e cinco anos de atraso. Como tudo pode ser alterado, nada tem valor de documento e vivemos uma ditadura do sofisma.

Não importa mais onde estava a sua aliança, onde estava a sua ação, onde você estava ontem a noite. Queime todas as suas pontes, porque se tudo der errado, você não teve culpa, sempre pode falar que não teve cor de corajoso capitão, dizendo que optou pela posição laranja.

E para quem não reconhece fatos, não há retórica que se valha. Para que aceitar discordâncias se podemos esquecer que elas existem? É extremamente conveniente esquecer daquela pessoa que você não gosta, daquelas opiniões que você repulsa, daquelas realidades que te assustam.

Orwell mostrou que tipo de vida política nascia deste tipo de descaso. Hoje mais uma vez a ciência humana se mostra a mais apta entre todas, pois demonstra qualidades quase divinatórias, mostrando o retorno do sofisma vazio ao cenário mainstream.

Da última vez que isso aconteceu, tudo acabou em sangue. Desta vez, se acabará em fogo? Pois este monte de covardes formiguinhas, que tão bem protegem as suas imagens nos espelhos das redes virtuais, apagando o seu passado, não vêem como podem se queimar na realidade, que como um bom fantasma, volta para te assombrar e te arrastar para o inferno no final.

E com o roteiro de apoiadores arrependidos, farão um belo filme de uma bela mentira sobre o que aconteceu na última vez que a Terra girou de verdade, acabando com a virtualidade das almas.

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Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan