Pulando o vão de dez mil quilômetros

Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro
Published in
3 min readJul 27, 2018

Acende o incenso, música ambiente, a rádio anda bastante repetitiva, talvez escolher um disco que já guarda um pouco de pó por não ser escolhido tantas vezes. A luz está muito branca, os óculos estão muito sujos. Tudo precisa estar certinho antes de começar, vai que de repente esse é um dos longos.

Agora sim, a tela do computador está com a nitidez que justifica a decisão pela compra dele. Vamos começar então: negrito, Caixa alta T, continua. Eis que surge: Título. Pula uma linha, parágrafo.

Até aí nem é um começo, é o mesmo ritual de toda vez que precisa trazer palavras para a fictícia folha branca que a Microsoft desenhou para um realismo tão longe da realidade. Um olhar para a direita, o datilógrafo está quase observando. Ninguém entende, mas é mais prazeroso escrever fora de um computador.

Também é um clichê ninguém compreender o escritor…

Porque está tão difícil? O motivo já era conhecido, admitir que era doloroso.

Mudanças…

Está tudo tão lindo, o caminho é tão mais prático e mais bonito, toda dor inicial passou e você sabe que a mudança foi perfeita em sua hora. As caixas já foram para reciclagem, seus livros já estão organizados, os discos acessíveis, a geladeira funcionando. Tudo no lugar.

Só que a diferença sempre muda alguma coisa, e mesmo quando muda para melhor, tira do eixo aqueles que precisam de estabilidade. Com certeza os escritores e artistas, que negam e negarão até a morte, são os que mais precisam de estabilidade. O sofrimento é bom para inspiração, mas ninguém pinta uma obra prima com a cabeça gritando de dor.

O controle sobre o redor é que permite que a criatividade acenda e ponha para fora tudo que de humano vira terreno e eterno através dos dedos, expandidos pelas ferramentas e instrumentos. É justamente por isso que cada pincelada chora, cada letra grita, cada corda geme. Não é nada além de sentidos acionados, aplicados para gerar a maior necessidade humana, a empatia.

Mais um motivo para ser ridícula a dor de admitir desconforto, como se não soubesse que não sabe lidar com mudanças, você: o louco que tinha vergonha de deixar um copo pessoal no trabalho mesmo depois de notar que todo mundo fazia isso, o medroso que demorou uma semana para trocar o papel de parede do computador que lhe foi dado.

Nem adianta mentir para si mesmo e dizer que todo mundo sente essas inseguranças, você conhece você mesmo e sabe que é especial em paranoias. Todos os planos que você ainda mantém para sua mesa no escritório que, francamente, nunca sairão do papel, depõe contra você. O medo de deixar uma marca, de ser um intruso, não vai te abandonar.

Leva muito tempo para você aceitar que um ambiente pode ser seu. Por isso quando você ganha, você finca suas unhas para que para sempre aquela matéria tenha sido alterada pela sua própria essência.

Em devaneios você vai continuar planejando e almejando as mudanças do seu futuro, que seu coração pede com tanto furor. Quase como se a felicidade delas precisasse vir acompanhada da dor que você vai sentir quando tiver que cortar os fios de sustentação do passado, para abrir a porta para o futuro.

O lado bom é: você está feliz, sua esposa chegará logo, e você conseguiu escrever. A parte difícil já foi, agora só falta todo o resto…

--

--

Daniel Muñoz
Nativo Estrangeiro

Um dia jornalista, hoje historiador. Escrevo só sobre o que quero e quando acho que tenho algo a dizer. Para mim é importante a diferença entre Ochs e Dylan