Terra Sem Mal

Rafael Coutinho
a nébula
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7 min readSep 18, 2015

Qarup cresceu por ali. Está na beira do rio, pés na água, poucos metros distante do lugar onde nasceu. Mas, queria estar em casa. A chuva cai grossa. Sua tribo não viveu para ver a Marginal Pinheiros ser construída, ele sim. Enterraram seu mundo em concreto.

Agora, se esforça para rever a família nas águas escuras. Finge que enxerga seus irmãos pescando em um mundo onde o esgoto não foi inventado.

Trazer essas memórias para o presente é parte do rito que o índio executa.

Faz sessenta e dois anos que na noite da última lua cheia do verão, lá estava Qarup, tomando chuva na beira do rio Pinheiros, logo atrás da Usina de Traição, zona sul de São Paulo.

Ele precisa trazer sua família para aquele momento. Precisa chafurdar na merda para pescar seus avós.

Vive memórias dentro de si enquanto sorri para geladeiras boiando no leito de sua mãe.

Precisa se lembrar dela, principalmente.

Aparenta ter trinta e pouco. Tem milhares a mais.

Evoca memórias com a ponta dos dedos, acompanha os desenhos em seu corpo e usa o tato como guia para reconstruir épocas passadas. Aquelas linhas desenham outros tempos, ele olha para a vegetação das margens do Pinheiros, à noite, na chuva, e vê o sol brilhando nas folhas maduras do pequawa enquanto encontra o cheiro do suor da querida Maradi na sopa de bactérias do rio.

Se demora mais nas tatuagens que lembram momentos felizes.

Desenvolve um ritmo suave, dança.

se alonga como um gato.

Tocando de leve seu corpo, sem parar.

Qarup está na última lua cheia do verão desde mil novecentos e cinquenta e três. Para seu povo, é neste dia que cai a chuva de lua. A noiteágua. Lembra da festa que era, jantar de cará dos ares com o peixe ireyie, horas de música e dança e amor.

O dia do povo rio. Quando ele e sua família se lembram quem são.

Hoje, pensa, o dia é uma cruz, e se arrepende do pensamento.

Logo, desmancha a imagem com as mãos.

Cospe no jesuíta que deixou um deus morto em sua casa.

É livre pelo resto do ano. Na chuva da lua, não.

Está ali porque quer desde antes do prédio estar concluído. Usina de Traição, enorme caixa de concreto que atravessa as águas do Pinheiros. Em frente à ponte da av. dos Bandeirantes, está lá até hoje essa aberração da engenharia. Usina Elevatória de Traição, propósito: inverter o curso do rio.

E, para isso, precisam de sua mãe. A caixa de concreto é uma prisão. Prisão de rio.

São loucos, lamenta. Prender água?

Se ofende com a ideia.

Qarup Pura Vida, espírito da fertilidade Guarani, nascido bem ali onde construíram o shopping Cidade Jardim e suas torres residenciais.

Cada camada de concreto e asfalto sobre essas margens é uma cicatriz.

E ele sente tudo. Quanto mais recente a tatuagem, maior o desgosto do espírito Qarup.

Apressa o gesto para acabar logo com isso, acelera o rito e encontra intensidade.

Não aguenta, vive décadas de claustrofobia e fome em poucos minutos.

Desacelera o ritmo, respira.

Súbito, estalo.

“Ele não completou o ritual”, diz seu sorriso.

Respira de novo e enche o peito com endorfinas.

“Ele não completou o ritual!”, se vira e grita a plenos para a marginal.

“Ei, bom pra ele”, responde um morador das redondezas.

“Ow, olá, não vi você aí”, diz Qarup quase assustado.

“Tranquilo, eu tou te vendo há um tempão já. Ta dançando bem, hein indjão?”

“Ãn, brigado. Eu tô feliz.”

“Bom pra ti cara! Eu tou fudido, rawrawarwrarw, cof cof”.

“Você tá bem?”

“Tudo sim, rwcof, tudo sim. Tem remédio aqui, ó, quer?”, e oferece uma garrafa de caninha.

O índio vacila e responde, “não… não, obrigado.”

Tem seus sessenta anos, o velho, e está abrigado embaixo de uma carroça pimpada. É um catador de recicláveis que está tomando chuva há horas.

Qarup se vira pra usina, faiscando pelos olhos.

E para as nuvens, grita: “ele não completou o ritual!”

Qarup pula e festeja na beira d’água. Bate na superfície, faz grandes desenhos, ondas.

Faz isso tão genuinamente que o velho pensa, ah, diabos, dá um gole grande, tira a camisa e corre prágua.

Pula ao lado de Qarup, que festeja.

Qarup começa a cantar uma cantiga Guarani.

O velho tenta acompanhar, mas principalmente balbucia enquanto dança com vontade.

Não se soltava assim fazia anos.

Adora e dá um grande abraço no jovem tatuado doido, que responde afetuosamente.

São contagiantes, houvesse mais alguém por ali, mesmo que de terno, certamente estaria com eles nas águas do rio Pinheiros.

O velho pega a garrafa e oferece.

Quarup, que é um baladeiro profissional, não, mais do que isso, um encantado baladeiro, sabe que gosta. Mas decidiu parar com 51 e essas outras horríveis de barrilzinho plástico.

“Não, obrigado.”

O velho abraça ele e diz:

“Isso aqui né pinga não! O Jona que cozinha, ele pega o que achar e faz cana. Agora achou uma pilha de sabugo de milho jogado num terreno aí, uma pilha enorme assim”, e desenha no ar a pilha com a mão…. “é cana de milho!”

Aí já era demais. Um dos papéis que Qarup exerce como espírito da fertilidade é tocar o álcool do cauim, bebida indígena de mandioca. Uma festa com ele é garantia de zero ressaca. Então, pode beber, indiarada.

Um homem purificador de goró. Pense na popularidade. Imagine, então, o quanto ele consegue beber.

Ele tem a pele macia e sem pêlos, tem bastante de mulher em si, como é próprio dos que nasceram sob signo da água. Se esforça para ser querido e, no geral, consegue. Uma hora ou outra, todos querem comer Qarup.

Quando mataram a garrafa, Qarup pergunta:

“Me diz seu nome, velho.”

“É Jura! Jura de Juraci e Juraci de Maria! E o teu?”

“Bom te conhecê aqui, Juraci de Maria. Meu nome é Qarup”, diz se afastando.

E depois, enquanto tirava a bermuda disse: “eu tô indembora, Jura.”

“Aí complicou”, rebateu o velho.

Jogou a velha bermuda longe e disse: “tou indo ver minha mãe!”

“Jesuis, o bicho endoidou. Eu disse que era forte a cana do Jona.”

Olhou para o velho com ternura. Se aproximou para abraçá-lo e Jura encolheu de homofobia.

Abraçou mesmo assim.

Afastou segurando os ombros. Disse: “amigo, fica com isso”, e colocou no velho o seu colar.

“Ééé..é.. brigado!”, disse Jura, tentando se afastar.

Porém, reavaliou sua situação. Olhou para o índio improvável, tatuado da cabeça aos pés, pelado dentro do Pinheiros e mais uma vez pensou, quesefoda! Relaxou, abraçou com tudo e foi retribuído. Um dos dois ficou de pau duro, mas não importa qual.

Se afastaram, e Qarup diz muito sério: “Jura, acredita em mim. Sai daqui. Agora. Pro seu bem, sai daqui, pega a carroça e sai. Sobe o morro. Sai daqui. É sério. Sai daqui.”

O velho entendeu que era sério e disse que sim, já estava indo.

“Mas.. e você, pronde vai?”

“Ver minha mãe!”, disse o índio enquanto pulava na água.

Por Breno Castro Alves e Rafael Coutinho

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