Gorillaz, o som da geração millenial
“Finalmente alguém me libertou da minha prisão”
PARTE 1: “O mundo está girando muito rápido”
Existem diversas definições de “millenials” ou para “Geração Y”. A maioria delas foi criada por boomers, a geração X, para tripudiar seus descendentes, culpando-os pelo estado do mundo que eles mesmos deixaram e acusando-os de serem mal-criados sem esforço nenhum de refletir quem criou. Uma outra parte foi criada por millenials que não sabem que são, pois de tanto lerem as definições sarcásticas dos boomers acabaram achando que millenials era sinônimo de “jovem”.
Mas se uma geração é um grupo de pessoas que tem referências parecidas relacionadas à um período de tempo em que desenvolveram suas personalidades, acho que uma boa definição para os millenials seria:
MILLENNIAL: pessoa que experimentou a infância nos anos 90 e experimentava a adolescência no ano 2000.
E como foi experimentar a infância nos anos 90? Bem, o mundo vinha da ressaca interminável das duas Grandes Guerras chamada Guerra Fria. Os adultos ainda tinham uma tensão do fim do mundo misturada com uma certa expectativa por ele. Aliando isso à virada não apenas de década, não apenas de século, mas de MILÊNIO, era impossível fugir da sensação de algo grande estava para acontecer e, ainda traumatizados pelo longo período de tensão nuclear que viveram, os adultos pareciam acreditar piamente que envolvia o fim dos tempos.
Outra expectativa constante era a popularização dos computadores e da internet. Muitos de nós nem possuíamos telefones fixos ou televisores coloridos, mas já sabíamos bem que o tempo da máquina de escrever estava contado e já sabíamos que as aulas de datilografia serviriam para outras teclas. E, como tudo dessa época, junto com a empolgante perspectiva vinha uma promessa de fim do mundo: o bug do milênio permeava a mídia quando o assunto era informática.
A eminência de um apocalipse não era apenas coisa de lunáticos impressionáveis com a chegada de um ano de números arbitrários que a própria humanidade decidiu utilizar por padrão. Havia também a crescente e constante preocupação com a degradação do meio ambiente, as guerras separatistas, as previsões de Nostradamus, os discos rodados ao contrário, o E.T. de Varginha, o aquecimento global.
Resumindo: nós, enquanto crianças e pré-adolescentes, eram bombardeados com notícias de um promissor futuro, cada vez mais próximo, porém não tão próximo do que o fim eminente de todas as coisas.
PARTE 2: “O futuro está vindo”
O mais estranho de tentar repintar esse cenário não é sobre as informações a se adicionar para a melhor compreensão de como era crescer e amadurecer nessa época. Mas sim remover algumas coisas. A principal é a internet e a informação rápida como um todo.
A informação, mesmo no final dos anos 90, não se teletransportava instantaneamente como hoje. Ela voava pelas antenas das TVs, ecoava pelas antenas de rádio e se arrastava pelas páginas de jornais e revistas.
Então o grande atrativo da TV não era necessariamente a velocidade, mas a plasticidade, a imersão, a versão completa da informação. Ali você tinha além do texto, o subtexto, algum contexto, um pretexto. É a mesma dimensão de diferença de apelo entre o Medium e o Youtube.
Não à toa, era o auge da popularidade da MTV e do papel dos clipes de música na popularização de um artista, de um movimento, de uma banda. Cada vez se investia mais no visual dos clipes e estes complementavam e/ou expandiam a mensagem das músicas, reforçando seu papel como um novo formato de arte.
Um clipe bem-feito poderia ser fator determinante para catapultar o sucesso de uma música tal como hoje viralizar no TikTok pode fechar contratos nessa indústria. Por isso a indústria investia pesado nisso. Não era raro grandes bandas lançarem seus clipes no Fantástico, por exemplo.
O que era raríssimo eram projetos em vídeo a longo prazo. Os clipes nem sempre tinham conexão com a música ou com a banda em si, imagina entre si ou pelo menos dentro do contexto de um álbum. O interesse por um clipe, em geral, nascia e morria em si mesmo.
Parte 3: “O amanhã chega hoje”
Damon Albarn era o líder da banda de pop britânico Blur. O que isso quer dizer afinal? Bem, basicamente que ele estava totalmente mergulhado no setor mais intenso possível da música dos anos 90.
A disputa de sua banda contra o Oasis em 1995 é um marco da história da música contemporânea do Reino Unido e por isso muito bem documentada, sendo essa corrida pelas paradas de sucesso do país chamada de “The Battle of Britpop”. Oficialmente, o Blur venceu.
No Brasil a banda ser quase uma “One Hit Wonder” com Song 2, música que foi composta para ser uma paródia da “falta de substância” e “simplicidade exagerada” do grunge americano que dominava o cenário do rock e que tem pouca conexão com as outras obras do Blur.
Já Jamie Hewlett era conhecido pelo seu estilo brutal de desenho dos quadrinhos Tank Girl, da revista Deadline. Tank Girl era uma garota que vive num futuro distópico na Austrália, pilota um tanque de guerra e se envolvia em situações envolvendo sexo, drogas, violência. As histórias são escritas pelo co-criador Alan Martin.
Hewlett e Albarn se conheceram em uma entrevista da banda para o Deadline, solicitada pelo guitarrista do Blur, Graham Coxon, que era muito fã do trabalho de Jamie publicado na mesma revista. Em 1997, os dois dividiram um apartamento em Londres (o que nos faz pensar muito sobre o preço dos imóveis naquela região e/ou na remuneração dos artistas na época, visto que dois bem sucedidos e bem concentuados tiveram que dividir aluguel).
Foi nesse apartamento que os dois tiveram o momento catártico. Assistindo a MTV, sentiram falta de algo realmente interessante ali, que pudesse gerar algum debate, alguma conversa. Sem Damon um músico e Jamie um artista visual, eles logo perceberam que tinham as capacidades exatas para preencher os requisitos da MTV perfeitamente.
Nascia aí o Gorillaz.
Parte 4: “Pare de dançar a música do Gorillaz alegremente!”
Veja bem, eu sei que a parte anterior é o básico, algo que você poderia já saber ou mesmo descobrir com uma rápida busca no Google ou Bing, lendo um ou dois artigos na Wikipédia, perguntando para o ChatGPT ou Bard. Essa biografia está em qualquer vídeo, qualquer texto, qualquer entrevista do Gorillaz. É o press-release de apresentação da banda, praticamente.
Mas eu precisava colocar isso aqui para ligar os pontos, para realmente contextualizar o porquê eu acho que o Gorillaz é o principal fruto musical da época que gestou a geração milennial. E também de onde vem e para onde foi toda a força criativa da dupla que orquestra até hoje esse grande ato artístico que é essa banda.
Quando o Gorillaz foi lançado ao mundo, a ideia de ser uma banda virtual, onde os músicos “não existem” de fato fez os olhos da indústria brilharem. O conceito de “virtual” já era jovem e refrescante o suficiente para atrair um interesse midiático imediato, então se fosse só um golpe de marketing sem alma, tudo bem, porque já se pagaria pela idéia e pelo timming.
Mas tinha muito conteúdo. Damon catalisou todo o pessimismo de final de século que nos cercava em sua música, criando letras e sons que pareciam vir direto de um mundo pós-apocalíptico e isso se casou como uma luva na o estilo de arte de Jamie, que já navegava por essa temática a muito tempo em Tank Girl.
A relação simbiótica do processo criativo de Jamie e Damon é incrível e provavelmente o que manteve os fãs ativos esses anos todos, mas é preciso entender que ela surgiu ainda na preconcepção da banda, foram justamente os trabalhos artísticos de ambos que levaram-os a se conhecer naquela entrevista.
Além disso, a música que basicamente fundamenta até hoje o que é o Gorillaz só aconteceu por resultado dessa simbiose e isso é uma declaração factual, não subjetiva.
Damon convidou o produtor Dan the Automator para produzir o primeiro álbum da banda, Dan estava trabalhando simultaneamente com Delton 3030 (que eu recomendo muito que você escute, clique nesse link imediatamente!), seu trio com Dj Kid Koala e o lendário rapper Del the Funky Homosapien, Damon aproveitou a chance e pediu para Del the Funky gravar uns versos para “Clint Eastwood”, que já estava pronta (a versão inicial com o duo de rap Phi Life Cypher foi lançada na compilação G-Sides depois). E Del só aceitou fazer os versos porque era fã de quadrinho e fã da Tank Girl desde sempre.
E essa corrente continuou e continua até hoje. O visual de Jamie para o clipe colocou a música em destaque eterno na MTV. A direção musical de Damon colocou a música em destaque em todas as rádios. E a colaboração de Del the Funky abriu o caminho para o qual o Gorillaz sempre rumaria, tanto colaborando com os rappers mais bem conceituados do cenários do hip-hop, desde Dela Soul e Mos Def, até MF DOOM, Pusha T.
Combinações que deram tão certo que logo se ampliaram para todo e qualquer gênero, seja com ícones do rock como Lou Reed (The Velvet Underground) ou Stevie Nicks (Fleetwood Mac), indies como Tame Impala e Bad Bunny, undergrounds como JPEGMAFIA (que disse verbalmente nessa entrevista que ficou feliz de trabalhar com o Gorillaz por ouvir Clint Eastwood quando criança) ou grandes estrelas pop como Elton John, ou mesmo com um funkeiro brasileiro com nome em referência ao responsável pelo atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001 (outro momento formador do caráter e personalidade da geração milennial), MC Bin Laden.
Além disso, já no primeiro álbum como um todo o Gorillaz trazia os outros elementos que se mantiveram firmes ao longo da jornada da banda. As letras melâncólicas, o rock alternativo, a experimentação de sons e vozes, a junção de letras com um cânon dos personagens virtuais da banda cria todo um universo para que amantes de música, amantes de quadrinhos e amantes de arte no geral possam dissecar e comentar sobre. Exatamente o ideal que a dupla Jamie e Damon traçaram naquele dia catártico num apartamento de Londres.
Conclusão: “tempo para mim não é nada, porque não envelheço”
Muito se falava que Gorillaz era a primeira banda virtual, e hoje se fala que é a banda virtual mais bem sucedida da história. Isso é uma visão rasa do que a banda fez e faz. A banda não foi criada artificialmente num software que gerou as letras, os desenhos, as músicas e as parcerias. A banda não existe e não interage apenas em seu mundo fictício de cartoon e ninguém sabe ou se importa quem os cria.
Pelo contrário, é a correlação entre os artistas idealizadores e realizadores desse projeto com as artes que eles geram e com o mundo que os rodeia é que tornam isso tão interessante. É a música, são os livros, são os vídeos, os documentários, as parcerias artísticas e musicais, crossovers (como quando Ace, das Meninas Superpoderosas, foi baixista da banda por um ciclo inteiro, durante o álbum Now Now).
O Gorillaz é uma banda multiplataforma, multi-cultural, um multiverso artístico, com multi-gêneros, multifacetário, criado por duas pessoas reais, mas abraçado e realizado por múltiplos personagens reais e virtuais. O resultado de tudo isso é a experiência completa da vida e existência de todas as pessoas pertencentes a geração milennial.
Afinal, todas as gerações antes de nós nasceram e desenvolveram suas vidas totalmente conectadas pelo mundo real. Todas as gerações seguintes nascem e se relacionam principalmente no mundo virtual. Somos nós que nos desenvolvemos nessa interface.
E para nós e sobre nós que as letras do Gorillaz sempre falaram. E ainda falam. Mas vou falar sobre cada uma delas em outros textos.