A CARTA DE NINGUÉM PARA TODO MUNDO

Aline Vitória Rocha da Silva
Nem casa, nem lar
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4 min readNov 21, 2019
Foto: Internet

Ei você,

Se parou para ler essa minha carta, já fico muito feliz e agradeço! Geralmente, as pessoas que passam por perto de mim não costumam nem me olhar, sou completamente ignorado, as vezes até me sinto invisível. Por isso, esse tempo que você dedicou para ler o que escrevi, importa muito para mim.

Todo mundo sabe que em qualquer cidade existem pessoas assim como eu, que moram na rua, passam fome e vivem em situações difíceis, mas nem todo mundo sabe o porquê disso, e nem se preocupam em descobrir. Na maioria das vezes, morar na rua é a opção que resta para a pessoa que já se vê sem ter para onde correr. Não é falta de força de vontade, não é preguiça, não é “falta de vergonha na cara”, como muitos dizem. Já ouvi muitas histórias de pessoas que vivem nas ruas, ouvi os motivos para que ficassem sem terem onde morar. São coisas como uma viagem mal sucedida de um estado para o outro e a dificuldade em encontrar um novo emprego, um vício em bebidas alcoólicas ou em drogas, a falta de tratamento de um vício e a falta de apoio dos familiares, o abandono da sociedade e até o abandono de si mesmo.

Por mais que muitas pessoas, assim como eu, estejam vivendo e morando nas ruas há anos, essa situação não é nem um pouco confortável, é algo que gera desconforto e constrangimento, além de ser uma forma de viver muito solitária. Muitas das pessoas que passam por perto de onde ficamos, sentem medo da gente, se assustam, acham que vão ser assaltadas, perseguidas, quando na verdade, quem mais teme somos nós! O que mais queremos é poder ter a certeza de que passaremos por mais uma noite em segurança, com vida, sem que ninguém mexa com a gente e nem com as nossas coisas, porque por mais que tenhamos pouquíssimas coisas, existem pessoas mal intencionadas que acham graça em fazer maldade com quem tem menos. Levam nossos cobertores, nossas roupas, jogam água na gente enquanto dormimos, isso quando não somos agredidos ou ameaçados.

Todos nós que vivemos na rua, já tivemos nossas histórias e também somos seres humanos! Assim como você, um dia tivemos uma família, um lar, uma posição social e contato com pessoas que se preocupavam com a gente. Mas como na vida precisamos arcar com as consequências dos nossos atos, continuamos procurando toda noite por um lugar para descansar, uma cobertura para poder montar nosso acampamento.

Ao longo dos dias, quando temos sorte, nos deparamos com pessoas boas que conseguem nos enxergar e perceber que somos seres humanos também. Essas pessoas nos oferecem alimento, água, até mesmo dinheiro para que possamos comprar comida uma outra hora, tudo isso é o que nos mantém vivo, as doações e as ajudas de boas pessoas. Existem também, os centros de auxílio aos moradores de rua que permitem que a gente tome banho e escolha uma roupa nova para poder usar, além de doar cobertores para que a gente não passe frio durante a noite.

Com todas essas necessidades básicas, nós somos amparados e conseguimos dar um jeito de nos virar, porém o que nos falta é o principal: o afeto! Em datas comemorativas como o natal, a páscoa, ou até mesmo o nosso aniversário, nós temos apenas mais um dia normal, sem cerimônias, acabam sendo passadas em branco, não temos o carinho da nossa família, a companhia, só temos a presença de nós mesmos e fortalecemos a nossa amizade que é o que nos faz continuar tendo esperança na vida. Somos muito parceiros! Se um conseguiu alguma roupa ou alguma comida, ajuda a conseguir para o outro, ninguém se abandona na rua, criamos a nossa própria família para não nos sentirmos sozinhos, e desse jeito vamos levando.

Eu sinto falta da minha família, mas acho que eles não sentem a minha. Na verdade, eu tenho até vergonha que me vejam da maneira como estou, prefiro que fiquem longe da pessoa que me tornei. Eu gostaria de poder voltar atrás e tentar fazer tudo diferente, quem sabe hoje eu não estivesse aqui sozinho.

Morar na rua é um desafio diário, você nunca sabe o que pode acontecer, seja relacionado com o tempo ou com o humor de quem passa pela rua, a chuva é algo que nos pega de surpresa, alguém pode aparecer mal intencionado e querer sacanear com a gente, são coisas do tipo que nos fazem temer o novo dia que vai chegar.

Por esses motivos, eu digo para você, se você tem a sua casa, seu lugar para poder morar, um teto para dormir, um lugar para chamar de seu lar, valorize. Se você tem a sua família perto de ti, cuidando de você e zelando por sua vida, valorize-os! Dê valor a cada banho que você toma em um chuveiro com água quente, a cada copo de água que você consegue tomar pegando da sua torneira, a cada alimento que tem acesso diretamente da sua geladeira, a cada roupa lavada e cheirosa que você usa, dê valor! As pequenas coisas do seu dia-a-dia são as que mais fazem falta no meu, por isso, saiba aproveitar tudo o que eu não posso e não consigo aproveitar, saiba valorizar o que você tem, enquanto você tem e sempre seja grato por tudo que tem!

Com carinho, Um Zé Ninguém.

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Aline Vitória Rocha da Silva
Nem casa, nem lar

Estudante de Jornalismo do Centro da Fundação Assis Gurgacz, no 8º período do curso. Paixão por escrita e tendência à redação.