Como os fotojornalistas têm encarado a COVID-19

silvio da costa pereira
Nephi-Jor
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11 min readAug 31, 2020

Muito tem sido abordado a respeito da valorização do jornalismo desde que começamos a vivenciar a pandemia de Covid 19. O que quero ressaltar aqui é uma parte deste fôlego recente que ganhou a área. Me refiro ao papel que os fotojornalistas têm desempenhado na cobertura não só da pandemia mas dos assuntos em geral, num período em que o contato jornalístico com as fontes passou a ser preferencialmente mediado por tecnologias em função da segurança sanitária. Esses profissionais especialistas que vêm, dia a dia, tendo de competir com colegas da redação, cidadãos, agências e assessorias, redes sociais entre diversos outros atores, na produção de imagens, ganharam destaque e protagonismo no jornalismo ao arriscar sua saúde trabalhando nas ruas, hospitais, cemitérios e diversos outros locais, vazios ou apinhados de gente.

Esse risco inerente à função desempenhada — uma vez que não é possível captar imagens a distância — está explícito não apenas na impossibilidade do home office, mas nos equipamentos de proteção individual (EPIs) usados. Em matéria já tirada da rede (Sem trabalho remoto: repórteres fotográficos estão na linha de frente da cobertura da pandemia de Covid-19), o Knight Center comparou, em abril, a proteção usada por fotógrafos que cobrem a Covid àquela necessária aos profissionais que registram conflitos armados. Uma dessas roupas especiais foi mostrada pela repórter fotográfica Karime Xavier no Instagram no início de abril, e contrasta com a descrição da redação praticamente esvaziada do jornal Folha de S. Paulo feita à mesma época pelo repórter Naief Haddad. Embora o texto de Haddad não cite os repórteres fotográficos, refere-se indiretamente a eles quando diz que a redação “comprou 48 macacões de segurança, destinados aos jornalistas que têm de passar por áreas de maior possibilidade de contágio, como hospitais”. Boa parte — talvez a maioria — daqueles que receberam tal equipamento certamente são profissionais que captam imagens, e que precisam se expor mais que os colegas que podem obter informações por telefone, e-mail ou outros meios de comunicação. E explica porque álcool gel, luvas, máscaras e macacão são equipamentos bastante citados ao longo da pandemia pelos profissionais que precisam ir às ruas.

É claro que nem sempre o texto pode ser produzido numa relação à distância. A necessidade de ‘ver’ e ‘sentir’ para relatar existe, por exemplo, nas matérias onde se busca descrever o ambiente de um hospital — como foi feito pelo trio Artur Rodrigues (texto), Lalo de Almeida (fotos) e Mariana Goulart (vídeo) na matéria ‘Pacaembu troca emoção do gol por aplausos e doentes recuperados após coronavírus’. Existe também quando jornalistas freelancers produzem conteúdo em múltiplas linguagens — como faz Yan Boechat, que levantou a questão da subnotificação de mortes por Covid ao acompanhar cemitérios paulistas por uma semana, matéria que foi publicada pela Folha. “A partir de 13 de março, a coisa começou a ganhar um contorno mais sério no Brasil e eu passei a ir pra rua. […] Como eu sou muito ligado a fotografia também, ir pra rua faz parte desse jogo, porque eu quero registrar essas imagens, e acho importante. […] Esses números precisam ter cara, precisam ter voz, precisam ter emoção, e indo pra rua a gente consegue isso” contou Boechat em entrevista concedida à professora e pesquisadora Vanessa Pedro. Para ele os dados oficiais são importantes mas não bastam para cobrir uma crise destas proporções. Mas há resistências a essa exposição. “Acho que a grande imprensa sofre dois problemas. Um é que ela está muito enxuta. Outra é que muitos jornais estão com medo de mandar os seus repórteres para a rua por questões legais. E tem muita gente com medo de ir trabalhar na rua, o que é compreensível”, avalia. Ele relata o caso de um veículo que se recusou a comprar uma matéria que havia produzido dentro de uma UTI por medo que, caso ele se contaminasse, viesse a processar o jornal. Mas se há algo em comum entre todos os repórteres fotográficos que se expões diariamente aos riscos da pandemia é o medo em adoecer, tanto pelos riscos inerentes à uma doença ainda muito desconhecida e grave quanto revés financeiro que adoecer pode provocar. Boechat afirma na entrevista que seu único medo é “ficar doente e ter de ficar em casa”, mesmo sabendo que tal possibilidade não é baixa. Buda Mendes, da Getty Images usa a palavra “pânico” para descrever seu medo em se infectar. Ele conta, em entrevista concedida ao editor Sérgio Moraes, que para trabalhar precisou ficar afastado da família, em especial do filho pequeno e da mãe. “Eu me cuido bastante. Confesso que sou paranoico com essa coisa do álcool gel, esterilizo o equipamento várias vezes. Durante a pauta tô ali tomando banho, encharco o carro, não deixo ninguém que tá comigo ficar sem máscara. Fico de máscara o tempo todo. […] Quando eu fui nos dois hospitais, e nesse último agora, o hospital de campanha, a realidade é bem dura. É triste você ver. Você vê gente nova. No início só falava ‘os mais idosos’, mas hoje você vê gente nova totalmente entubada. E o médico olha pra você e fala ‘não faz nenhum retrato ali’. Até por conta da ética a gente não pode fotografar o rosto, mas o médico até fala ‘não chega muito perto porque o grau ali tá num estado gravíssimo. E eu fui ao CTI do hospital, então o contato era muito próximo. Então você vê que a realidade é bem diferente do que falam”.

Até antes do início da pandemia relatos como esse feitos por Yan Boechat ou Buda Mendes era mais raros na web. Geralmente ocorriam em palestras que esses profissionais proferiam em escolas de jornalismo ou fotografia. E foram as mudanças de hábitos provocadas pela própria pandemia que trouxeram um pouco mais destas estórias até nós. Diversas lives começaram a ser feitas por ou com fotojornalistas. Algumas requerem inscrição para participar (como a que a Getty Images Brasil fez a coordenadora no Brasil e três profissionais), e outras não ficam gravadas na web (como a conversa entre as fotojornalistas Bruna Prado e Wania Corredo no Instagram da primeira). Entre as que podem ser acessadas uma série interessante vem sendo feita por Sérgio Moraes, editor-chefe de fotografia da Agência Reuters no Brasil, através do canal do Retrato Espaço Cultural no Instagram e/ou no Youtube.

Bruno Kelly (abaixo): “Essa foto, pra mim, foi uma das mais difíceis de fazer. Eles (SAMU) receberam um chamado. E era próximo da base deles. Aí a gente começou a se paramentar, porque tem que ir já paramentado. E aí a residência onde foi o chamado era meio próximo da base. E aí eu acho que os familiares pegaram e levaram o paciente pra base. E aí ela foi até o carro. A gente já tinha terminado de se arrumar, já tava dentro da ambulância. Saímos todo mundo. E ela ‘não, ele tá tendo uma parada’. Aí tira ele do carro e começa a reanimar. E aí vc olha, tinha bastante familiares. Você começa a olhar aquela coisa pra pedir autorização. Como é que você vai fotografar isso sem a pessoa autorizar. Aí vi uma pessoa ali, por coindidência era o filho desse senhor — não lembro o nome dele agora — e ele ‘não, tudo bem, pode fotografar, não tem problema’. E aí eu comecei a fotografar. E foram quase quinze minutos tentando reanimar ele. Todo mundo chorando. A família toda em volta. E aí você olha. Às vezes as pessoas te olhavam. E eu tava, putz, chorando pra caramba. E também chegou uma hora que eu não consegui mais fotografar. Baixei a câmera. Nossa! Foi super difícil”

A entrevista feita com o fotojornalista Bruno Kelly no final de maio foi especialmente focada na questão da cobertura atual. Realizando o trabalho a partir de Manaus, um dos epicentros iniciais da pandemia no Brasil, ele relata que no início da pandemia “tinha essa coisa de ficar mais distante, mas não tem jeito. A gente acaba tendo de chegar um pouco mais próximo. Claro que com todas as proteções de segurança”. Aqui ele se referia de modo específico à sua forma de trabalho na cobertura junto aos familiares das vítimas, no curto e único momento de despedida que ocorria nos enterros. Mas estar todo protegido em um cemitério, um dos locais centrais nas pautas realizadas no início da pandemia, podia causar estranheza junto à pessoas que, no máximo, estavam usando máscaras comuns. Em função disso, relatou Yan Boechat, “em geral, quando eu vou conversar com as pessoas que tiveram vítimas [na família], eu procuro não me paramentar exageradamente”. Mas o choque entre vítimas e repórteres podia estar também na busca pelo anonimato. Kelly diz que no início da pandemia o medo de sofrer preconceito ao ser associado à doença após aparecer na imprensa afastava mais as pessoas do que a diferença na proteção usada.

A pandemia também provocou mudanças para alguns fotojornalistas que atuavam em setores especializados, como Buda Mendes. Especializado em esportes, sua agenda para 2020 estava repleta de compromissos quando a pandemia chegou ao Brasil. Ele então foi deslocado para a cobertura da Covid e de outras questões relevantes nesse período. “Quando eu vi eu já tava dentro de hospital, fazendo vida de enfermeiros, procurando estórias” contou. “Mudou tudo. O cenário mudou completamente. Eu não tinha muito aquela coisa do hardnews, de ter contato com as pessoas. O fotógrafo de esportes ele fala muito pouco. Não tem como chegar para um atleta e falar ‘vem, vem, comemora aqui’ […] E na rua você tem de lidar com as pessoas, tem que lidar com a coisa de gente que não quer ser fotografada. […] No primeiro momento, o que eu idealizei: vou no drone”. E foi voando que ele registrou a celebração do Domingo de Ramos na Basílica de Aparecida, cenário totalmente diverso dos anos anteriores devido à necessidade de isolamento social. Mas chegou um momento que foi preciso ir pra rua. “De alguma maneira eu venho conseguindo contar evitando estar no lado mais triste da tragédia. Eu, como fotógrafo de esporte, eu fotografo a alegria. Então é um pouco difícil pra mim contar a dor” diz, ao relatar que sentiu-se muito mal na cobertura que precisou fazer em um cemitério. Por isso ele diz que prefere mostrar o trabalho de quem está na linha de frente ou as iniciativas para minimizar os efeitos da tragédia. Mas talvez seja a estória narrada por Joedson Alvez que sintetize o peso da cobertura de um enterro e como isso pode impactar psicologicamente o fotojornalista que o acompanha. “Nessa situação aí [a segunda foto mostrada aqui] foi tão desesperador que esse cara chegou sozinho com o caixão. E ele gritava. Foi uma coisa muito horrível. Foi tão forte que eu realmente me entreguei pra ele, fiquei muito mal, chorei também. E ele caia no chão, e rolava no cemitério. Então foi uma cena bem horrorosa de se ver. Super pesado”.

Buda Mendes fala sobre seu trabalho em live da Getty Images

A Covid também transformou a rotina dos fotojornalistas de outros modos. Agora, ao final de um de um longo dia de trabalho não basta chegar em casa e tentar descansar ou partir para a vida doméstica. Há a necessidade de higienizar todo o equipamento, detalhada e minuciosamente, além de lavar todas as roupas usadas. Alguns como Boechat montam o que ele chama de ‘área suja’ dentro de casa. Buda Mendes relata que procede toda a limpeza do lado de fora. “Já tem todo um preparo na minha casa pra poder já começar essa limpeza na porta. Limpo câmera por câmera, lente por lente, tudo. Tudo é limpo. Nem a mochila escapa. E isso às vezes demora muito tempo, em torno de uma hora, uma hora e meia pra poder fazer essa limpeza. Mas ela é vital. Eu não tenho como entrar com o equipamento vindo da rua e acabar contaminando a minha casa. Então eu tenho todo um cuidado. E o cuidado também de guardar esse equipamento limpo, também, pra que ele fique isolado, e só saia realmente na hora que eu for produzir outro trabalho”, relatou durante a live produzida pela Getty Imagens.

Também a gravação de vídeos sofreu alterações. Quando é necessário gravar entrevistas os microfones de lapela têm sido deixados de lado em função da necessidade de contato físico com a fonte. Eu seu lugar é usado o boom — ou microfone direcional — que permite gravar um bom áudio à distância. Mas saber transitar entre a foto e o vídeo também pode ser importante. Ueslei Marcelino relata a cobertura da saída de um militar idoso do hospital após vencer a Covid, na qual fez simultaneamente fotos e vídeo. “Eu tinha duas câmeras e falei ‘é o momento importante, esse cara tem quase cem anos, venceu o Covid, eu preciso ter um vídeo desse momento’. Eu botei uma câmera no chão. Apoiei o celular na câmera pra ela estabilizar e deixei gravando. Pré-foquei, botei um pouco mais de diafragma… não é a minha maneira de fotografar mas eu precisava do vídeo. Então eu vou tentar minimizar o erro, vou deixar rolando, e se der, deu.”. A cobertura foi realizada em meados de abril, no início das altas hospitalares, quando essa ainda não era uma cena comum. “E eu tinha a foto da minha maneira, como eu queria ali no momento, e tinha o vídeo” complementa Marcelino (entrevista publicada em duas partes: aqui e aqui).

Mas as imagens captadas por esses profissionais também vêm pautando diversos veículos ao longo da pandemia. Ocorreu assim com a foto feita por Adriano Machado, da Agência Reuters, que registrou o presidente Bolsonaro conversando, sem máscara, com três garis que faziam a limpeza do Palácio da Alvorada ao sair de moto. Em live junto ao Retrato Espaço Cultural o fotojornalista Ueslei Marcelino destacou a importância do trabalho dos fotojornalistas ao lembrar que essa imagem não teria sido captada com um celular, pois precisou de uma teleobjetiva para ser feita. Machado também foi um dos profissionais que captaram a imagem do presidente fazendo propaganda de hidroxicloriquina para uma ema, cena que — diferente da conversa com os garis — foi registrada por diversos profissionais. “Em Brasília o Coronavírus virou assunto político e não de medicina”, explicou Joedson Alves, fotojornalista da Agência EFE. Por isso uma imagem do presidente se relacionando com Emas ou expelindo perdigotos — tanto na entrevista citada acima quanto em em outra gravada só em áudio Alves conta a estória da produção desta foto) podem ser jornalisticamente relevantes. A imagem dos perdigotos ilustra também que o fotojornalista precisa compreender a importância jornalística daquilo que produz, em toda sua relação com o contexto do país. Essa imagem, que viralizou na internet tão logo foi postada, foi inicialmente recusada pela agência para a qual Alves trabalha. “A Agência EFE é um agência estatal [espanhola]. Apesar de termos uma liberdade em fotografar e fazer matérias de denúncia ou algo parecido ela é uma estatal. Então a gente passa por um crivo de editores pra evitar o constrangimento de você botar um estadista numa situação que possa dar algum problema. Essa foto foi um caso desses. Quem estava recebendo as fotos da manhã se recusou a botar no sistema mundial e aí eu perguntei pra ele se tinha algum problema com a foto, e ele disse ‘com a foto não tem problema nenhum, mas a gente não pode botar essa foto porque vai ter problema’. […] Eu explique pra ele […] que talvez no mundo ela é uma foto boba, mas aqui no Brasil seria uma foto interessante”. Mostrando que ela não teria sido oferecida aos veículos caso o fotojornalista não compreendesse o contexto de forma a demonstrar sua relação com a imagem captada.

Nesses casos os fotojornalistas, testemunhas oculares do ocorrido, também alimentam com informações o redator do texto que acompanhará a imagem. Por isso Ueslei Marcelino defende que o fotojornalista hoje deve ser um repórter que vai além da captação das imagens. Ele narrou que no início do ano passou 25 dias na Antártida, sem a companhia de um repórter de texto, e disse que essa foi uma espécie de preparação para o trabalho que vem realizando durante a cobertura da Covid. “Me deu tempo pra pensar de verdade, e ver que eu tinha responsabilidade como jornalista. Não só como fotógrafo”, diz, ao concluir que informar bem é responsabilidade de todo profissional do jornalismo, independente da sua especialidade. Para ele isso vai além da multitarefa pois o ajuda inclusive a circular melhor entre grupos de repórteres e cinegrafistas, e com isso estar continuamente em aprendizado.

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silvio da costa pereira
Nephi-Jor

Jornalista. Professor e pesquisador na área de fotografia e fotojornalismo junto ao curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.