Como minorias e internet ajudaram as pessoas na pandemia

Raquel Ritter Longhi
Nephi-Jor
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6 min readFeb 14, 2024

Ivone Rocha

Doutoranda pelo PPGJOR/UFSC e integrante do Grupo de Pesquisa Hipermídia e Linguagem/Nephi-Jor

As crises que afetam a sociedade, como ocorreu na pandemia, tendem a prejudicar mais os que têm menos acessos aos serviços. É o que aparenta ocorrer às “maiorias”. Para compreender e informar como a sociedade menos favorecida (sob o olhar do poder público) conseguiu sobreviver, se prevenindo dos riscos da Covid, em 2021 foi lançado o e-book “As minorias e o mundo digital pós-Covid 19”. O objetivo foi o de colaborar, sobretudo com as minorias, compartilhando opções ou soluções de como se reinventar, já que era isso o que se precisava naquele momento.

A publicação, organizada por mim e pela também jornalista Naia Veneranda, deu espaço a pessoas cadeirantes, cegas, negras, LGBTQIA+, gordas, mulheres, mães, com mais de 60 anos, entre outras, de contar suas experiências. O que nos impressionou foi a facilidade de adaptação de PCD aos recursos tecnológicos, sendo, em alguns casos, maior do que de pessoas sem deficiência. Houve até quem tenha ajudado pessoas sem deficiência no uso dos recursos da internet.

Na perspectiva de governos e de empresas, em diversas áreas, podemos considerar que a tecnologia digital foi a “salvadora da pátria” no período de pandemia. Além de ter contribuído sobremaneira para as relações pessoais e profissionais, promoveu inovações extraordinárias, como no campo da Saúde, por exemplo. Por meio de aplicativos, de software e de plataformas para videoconferência, foi possível monitorar o isolamento dos envolvidos nos setores da saúde, impedindo que o crescimento da transmissão do SARS-CoV2 (Celuppi et. Al, 2021) (1) alcançasse índices ainda mais alarmantes do que os registrados. Sobretudo no Brasil, foram mais de 5 milhões de casos confirmados, ultrapassando 700 mil óbitos, segundo dados do consórcio de imprensa (2) obtidos de secretarias de saúde dos Estados.

Do lado da sociedade como um todo, a internet também trouxe muitos ensinamentos e mudanças de hábitos. As pessoas encontraram outras formas de convivência e a aquisição de produtos e serviços, inclusive alimentos, que passaram a ser feitas por meio do celular. Obviamente, para isso alguns setores ficaram sob risco, como o da logística e o da própria saúde.

A ideia do e-book surgiu por se considerar que nas crises sociais os mais afetados são os que têm menos acesso aos sistemas e, portanto, são menos ouvidos e vistos. Assim, a publicação objetiva “colaborar para se restabelecer os direitos das pessoas, sejam elas mulher, preta, preto, gorda, com deficiência, da periferia, LGBTQIA+, com mais de 60 anos etc.”, como explica seu texto introdutório.

O e-book está dividido em oito áreas: Educação, Gordofobia, LGBTQIA+, 60+, Mulher, Mulher negra, periferia e pessoa com deficiência. Em cada uma há relatos de experiências vividas na pandemia com o apoio da tecnologia digital na superação dos desafios. Com os depoimentos nos textos enviados para publicação, foi possível pensar em como a cidadania vem sendo tratada pelo poder público. No texto da introdução, me lembrei de Milton Santos (3), quando menciona que “a figura do cidadão é tão esquecida”. Agora, na pandemia, não seria tão diferente, não fossem os recursos da internet. Esquecidos também são os direitos, os quais, ainda como lembra o geólogo, deveriam ser somados desde o nascimento do indivíduo. “Viver, tornar-se um ser no mundo, é assumir, com os demais uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais”, complementa Santos, na página 19 de seu livro “O espaço do cidadão”.

Embora todos os depoimentos apresentados no e-book sejam de grande valia, alguns nos chamaram bastante a atenção pelo seu caráter positivo e agregador. Um deles foi da cadeirante Carmem, que mostra a superação das dificuldades até mesmo quando orientou as pessoas sem deficiência sobre os benefícios das ferramentas digitais no período de isolamento social. Em seu condomínio, ao contrário do que se imaginava, os vizinhos eram ajudados por ela, que orientava sobre como fazer compras em mercados, hortifrutis, farmácias, padarias. Explicava ainda sobre cursos e plataformas de ensino a distância. Por suas condições físicas, isso já fazia parte de seu cotidiano muito antes de surgir a Covid.

Outro caso é de Paulo, deficiente visual apaixonado por concertos musicais e que fazia questão de estar presente em diversos espetáculos, como os da Casa São Paulo, localizada no centro da Capital Paulista. Impossibilitado pela pandemia de sair de casa, passou a acompanhar os eventos online, com qualidade suficiente para se sentir no próprio local. Isso porque ele descobriu plataformas específicas para não perder a qualidade do som. Há também a contribuição do Arthur, com a mesma deficiência de Paulo, que tem uma empresa de tecnologia que atende a psicólogos, professores e palestrantes também cegos. O livro traz ainda a experiência do bailarino Ian, com síndrome de Down. Sempre muito ligado às artes cênicas e sem poder estar nos tablados, compartilha a dança com seu grupo pelo computador ligado à TV de sua casa.

Há diversas outras histórias de ensinamentos e superação com o apoio das TDICs. Não devemos esquecer da problemática vivida por alunos e professores da escola pública, que se reinventaram com brincadeiras em plataformas de vídeo, jogos online, além de outros recursos no sentido de entreter os alunos e prender a atenção para as aulas. Isso porque, no final de abril de 2020 o Conselho Nacional de Educação (CNE) (4) aprovou as diretrizes para os procedimentos das escolas (básicas ou de ensino superior) durante o período de isolamento, como a utilização de videoaulas, plataformas virtuais, redes sociais, programas de TV ou de rádio e material impresso a ser entregue aos alunos.

No segmento LGBTQIA+, o ebook traz os relatos de Pedro mostrando o papel fundamental de organizações não-governamentais (ONGs), oferecendo moradia, alimentos e outros produtos, sobretudo de necessidade básica, às pessoas que perderam suas fontes de renda e foram ignoradas por grande parte da sociedade. Traz também a história contada por Alice em “Convenção sapatão”, cuja personagem Caribu trata das várias formas de demonstrar amor, como um abraço, um beijo, palavras românticas, independentemente do tipo de relação.

Outras vivências, com ensinamentos de como vencer os desafios do isolamento vieram de mulheres pretas e brancas que se dividiram para dar conta dos afazeres da casa, do trabalho e dos cuidados com os filhos. E ainda a adaptação de pessoas mais velhas à tecnologia digital. Sem contar a atuação de mulheres que integram ou lideram movimentos sociais e que não se sentiram intimidadas de continuar os trabalhos, mesmo a distância.

A conclusão que tiramos da realização do e-book “As minorias e o mundo digital pós-Covid 19” é de que a sobrevivência no período de isolamento teria sido infinitamente difícil não fosse a internet e que, talvez, milhares (ou milhões) de outras pessoas teriam sido vítimas fatais. E que a conexão, independentemente de seu formato, parafraseando Castells em seu “A sociedade em rede” (5), “se constitui uma nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. Antes de julgarmos a internet e suas redes sociais como causadoras de problemas a crianças, jovens e adultos, se envolvendo em relações perigosas, que tal pensarmos nela como um instrumento para promover o afeto e o amor? Movidos por esses sentimentos, todos seremos beneficiados pelas tecnologias digitais de informação e comunicação.

Te convido a sentir a sensação dos autores, a aprender com eles e a se impressionar com as diversas formas de sobrevivência. Por aqui você pode baixar o e-book As minorias e o mundo digital pós-Covid19. Espero que goste.

Notas

1 CELUPPI, Ianka Cristina; LIMA, Geovana dos Santos; ROSSI, Elaine; WAZLAWICK, Raul Sidnei; e DALMARCO, Eduardo Monguilhott. Uma análise sobre o desenvolvimento de tecnologias digitais em saúde para o enfrentamento da COVID-19 no Brasil e no mundo. Cadernos de Saúde Pública 2021 — Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em https://www.scielo.br/j/csp/a/rvdKVpTJq8PqTk5MgTYTz3x/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 14 fev. 2014.

2 AGÊNCIA BRASIL. Estudo mostra que pandemia intensificou uso das tecnologias digitais. Desigualdades de inclusão digital foram acentuadas. 25/11/2021. Dispon[ível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-11/estudo-mostra-que-pandemia-intensificou-uso-das-tecnologias-digitais. Acesso em 14 fev. 2024.

3 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1998.

4 CIPRIANI, Flávia Marcele; MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; e Carius, Ana Carolina. Atuação Docente na Educação Básica em Tempo de Pandemia. Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Petrópolis/RJ: Educação e Realidade, 2021.

5 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

G1 — São Paulo. Mortes e casos conhecidos de coronavírus no Brasil e nos estados. Onde as mortes estão subindo, em estabilidade e em queda. 28/01/2023. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/coronavirus/estados-brasil-mortes-casos-media-movel/ Acesso em 14 fev.2024

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Raquel Ritter Longhi
Nephi-Jor

Pesquisadora. Professora. Coordenadora do Grupo Hipermídia e Linguagem/CNPq e do Nephi-Jor/UFSC. Apaixonada por tudo isso.