Insights iniciais para pensar jornalismo em plataformas digitais — um olhar a partir de Trend Studies & Métodos Digitais

Ana Marta M. Flores
Nephi-Jor
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10 min readJul 22, 2020

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J á estamos todos fartos da infodemia/desinfodemia que vivemos hoje, eu sei. O termo popularizado pela UNESCO destaca exatamente a miríade de informação a que somos expostos, agora no campo específico da saúde. A infomedia de 2020 considera a camada extra da desinformação — a prova definitiva de que palavras podem mesmo matar.

[Esta publicação pretende discorrer rapidamente sobre tópicos que podem contribuir com a pesquisa contemporânea no campo jornalístico. Não tenciona esgotar o tema, apenas iniciar um diálogo transdisciplinar. A ideia é relacionar tendências em jornalismo aos Métodos Digitais, usando o Instagram como exemplo empírico sob a ótica das apropriações atualmente dadas a essas plataformas.]

Tendências identificadas para o jornalismo (Flores, 2019) já apontam há algum tempo esse estresse informacional do público, especialmente pelo ruído fomentado pelas plataformas sociais.

(Cappra, 2019)

Já no final da década de 1990, David Lewis cunhou o termo infoxication em Information Overload — Practical Strategies for Surviving in Today’s Workplace (1999) que delimita a ideia de "intoxicação" por consumo excessivo de informação. Essa visada sobre o termo vem sendo recuperada em pesquisas que procuram entender o volume de conteúdo que temos disponível e onipresente (Cappra, 2019).

Em 2017, o dossiê da Reuters Institute for the Study of Journalism (RISJ) identificou pela primeira vez na pesquisa realizada com mais de 70 mil participantes, em 36 países, um padrão de comportamento ativo nomeado de News Avoidance (algo como evitar notícias ou esquivar-se do noticiário).

(RISJ, 2017)

É imprescindível considerar o processo de plataformização (Van Dijck, Poell & De Waal, 2018) e as relações cada vez mais imbricadas do jornalismo com as plataformas sociais. Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (GAFAM), entre muitos outros, não exercem apenas um canal de distribuição, como se acreditava na primeira fase do jornalismo associado a mídias sociais. Já é muito claro que as plataformas determinam o que o público vê, quem é remunerado pela audiência, qual formato e gênero de jornalismo que emplacam (Bell & Owen, 2017). Nesses ambientes digitais, o armamento da informação (weaponization of information), fiel aliado da desinformação, vem dando fins perversos ao conteúdo informativo, muitas vezes ao se apropriar de linguagens e estruturas do jornalismo para divulgar dados unilaterais, falsos ou fora de contexto.

O que sugere ainda surpreender, todavia, é que esses discursos surgem cada vez mais diretamente de autoridades — e também, fontes jornalísticas. O fenômeno da desintermediação das fontes se apropria dos espaços virtuais onde os públicos estão, transformando-se num canal direto de divulgação. Esse comportamento comumente reforça um discurso que acusa os media de manipulação e fake news. Não seria exagero afirmar que a própria pessoa pública torna-se um veículo de comunicação. É o caso de personalidades políticas que você já sabe. Pensou em Trump? Em Bolsonaro? Exatamente.

Os usos aplicados por vozes públicas nas plataformas sociais como o Instagram são um rico ambiente de pesquisa para diversas áreas do conhecimento, incluindo o jornalismo. Ao considerar o contexto crescente da descredibilização da imprensa — potencializada nos discursos desses mesmos representantes políticos, e os perfis oficiais como palanque virtual 24/7, temos aí muitas possibilidades de estudo. O caso do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é emblemático.

Quando pensamos em plataformas sociais e sua cultura de uso, é importante entender esses ambientes a partir de conceituações próprias, muitas delas vindas dos Métodos Digitais. Os Métodos Digitais (Rogers, 2013) oferecem uma abordagem para entender como métricas e objetos nativos digitais (comentários, emojis e hashtags, por exemplo) podem ser utilizados simultaneamente como objeto e ferramenta de investigação.

Por exemplo, a gramatização dos Media Sociais corresponde a todas as ações rastreáveis e formas coletivas de atividade impostas e rearranjadas por esses ambientes. Likes, shares, tweets, comentários, hashtags fazem parte da especificidade da plataforma, que une a cultura de uso à gramatização de cada uma delas. Com isso, desenham-se dezenas de abordagens de estudo — pesquisa de engajamento por hashtags, análise visual de redes, análise exploratória de conteúdo textual e/ou visual, análise cronológica, análise de tendências, entre muitos outros.

Para além da especifidade técnica, a que muitas vezes os métodos digitais são reduzidos, nos interessa a sua própria definição: "a prática de pesquisa quali-quanti que re-imagina a natureza, os mecanismos e os dados nativos às plataformas web" (Omena, 2019). Nesse sentido, nosso interesse está menos centrado no desenvolvimento das funções técnicas de métricas de vaidade e objetos nativos, e mais atento em como esses elementos contribuem para moldar a cultura de uso e comportamentos-padrão nas plataformas sociais.

Outro ponto que acaba por combinar com a cultura de uso do Instagram, por exemplo, é o que vem pesando cada vez mais no pêndulo das tendências: a força das convicções ou interpretações e das bolhas informativas ou vieses de confirmação. É como se vivêssemos em uma era do wishful thinking, expressão usada para descrever um posicionamento particular formado por crenças baseadas no que é mais agradável de inferir, alinhado a valores pessoais, e não em evidências. Uma espécie de meio termo entre realidade, crença e desejo, profundamente relacionado a uma visão particular de mundo — neste caso cada vez mais conservadora.

Se fôssemos usar como ilustração das possibilidades iniciais para se pensar como esses usos estão sendo aplicados, podemos facilmente recorrer ao caso Jair Bolsonaro. Nomeadamente no Instagram, o atual presidente do Brasil acumula 17.249.631 milhões de seguidores — a sua maior base considerando Youtube, Facebook e Twitter.

Utilizando softwares de extração de dados, edição de planilhas, visualização de informação e imagens é possível ter um primeiro encontro com os métodos digitais. Na representação abaixo, trazemos as etapas de trabalho para uma análise inicial e exploratório do perfil no Instagram de Jair Bolsonaro, descritas a seguir.

Ao se deparar com os dados e as gramáticas do Instagram é importante saber quais perguntas podem ser respondidas com as informações disponíveis. Para isso, partimos da query via PhantomBuster, um software freemium que raspa dados de diferentes plataformas sociais. Usamos o módulo Instagram Posts Extractor, que extrai dados como URLs do post e das mídias associadas a eles, data e hora de publicação, número de likes e comentários e o texto integral usado na legenda do post, para citar alguns. Neste dataset foi possível extrair todos os posts publicados pelo político desde a criação do seu perfil na plataforma, em março de 2013. O arquivo de saída que usamos é um .csv (há a possibilidade de exportar os dados também em .json), e optamos por importar o .csv no Google Sheets (GS). Vale pontuar um detalhe: se há interesse em analisar emojis no dataset, recomenda-se usar o GS ao invés do Excel e similares, pois a ferramenta da Google lê emojis sem desconfigurá-los, além de ter fórmulas interessantes que ajudam na pré-visualização dos posts no próprio arquivo.

screenshot do dataset editado.

Depois de organizar e "limpar" a planilha, partimos para pensar as visualidades que estarão associadas ao perfil do atual presidente. Que tipos de imagens são publicadas? há algum padrão nesse conteúdo? Para facilitar essa percepção, utilizamos a extensão para browser DownThemAll que faz o download de todas as imagens (no caso dos vídeos, captura o primeiro frame) de uma lista de links. Essas URLs foram providas no nosso dataset, bastando apenas salvá-las em um arquivo .txt e subir no software. Em minutos temos disponível 4.443 imagens referentes aos posts publicados desde 2013.

Para visualizar essas imagens e navegar por elas de uma maneira mais intuitiva e prática, subimos as imagens no ImageSorter. O programa é gratuito e permite plotar as imagens por semelhança de cor, data de publicação e tamanho do arquivo.

Em uma primeira exploração do conteúdo se observa áreas de cor que identificam posts semelhantes. De partida observamos que Bolsonaro tenta reforçar seu discurso com o cross-posting, com destaque para prints do Twitter (a maioria dos tweets de autoria do próprio) e de vídeos do Youtube (a maioria disponível também em seu canal oficial).

recorte aproximado de duas áreas de destaque: à esquerda os posts com prints do Twitter e à direita posts de crítica à imprensa e ao Partido dos Trabalhadores.

O verde-amarelo-azul é um trio de cores muito presente no histórico de Bolsonaro e sugere reforçar o discurso patriota e de amor à bandeira brasileira. Destacam-se ainda fotos de eventos da agenda oficial (inauguração de obras, reuniões e visitas de autoridade) e pontos em vermelho, cor comumente associado aos partidos de esquerda e, portanto, oposição do atual presidente.

Outra possibilidade muito interessante de se explorar no conteúdo nativo digital são os emojis. Para além do sentido "divertido", os emojis são também recursos importantes na comunicação. Não é um uso comum do perfil do presidente Bolsonaro, embora tenhamos identificado 1439 inserções de emojis nas legendas dos posts no Instagram. O rastreamento foi feito ao copiar a coluna na planilha dos dados extraídos no software web-based Textanalysis (Rieder, 2019), com a função "Emoji Statistics". Obtemos a frequência dos emojis mais usados, criamos uma nova aba com essas informações e selecionamos os 10 primeiros emojis mais usados e usamos a ferramenta também web-based do Raw Graphs (Mauri et al, 2017) para visualizar essa informação. Selecionamos o modelo de visualização Treemap e editamos cores e os tamanhos dos emojis de acordo com a sua repetição no dataset.

Uma análise bem rudimentar pode perceber o óbvio: a coerência em promover as cores nacionalistas ao passo de que os países que mais aparecem como parceiros são Estados Unidos e Israel, muito presentes no discurso de Bolsonaro. Ainda, o sinal de positivo com a mão e o sinal de "arminha" (em referência à arma de fogo) aparecem em destaque, ambos com o tom de pele não-identificado (amarelo) ou com o tom mais claro. As setas e flechas, talvez inconscientemente, apontam sempre para a direita, posicionamento político alinhado a seu perfil.

[On a side note: os estudos de emoji, entretanto, sugerem ser infinitamente mais interessantes quando o objeto empírico são os comentários dos usuários dessas plataformas. Possivelmente por não serem pessoas públicas, o uso dos emojis é indiscriminado e pode, inclusive, rapidamente identificar quem apoia ou critica o posicionamento em questão.]

Por fim, resolvemos identificar como se dá a distribuição por tipo de mídia (foto ou vídeo) no perfil de Bolsonaro e como o engagement dessas publicações se distribui ao longo do tempo. Observamos que as fotos são a maioria (2.667), especialmente porque a popularização dos vídeos no Instagram teve um aumento em meados de 2014, aproximadamente um ano após a viabilização da publicação dessa mídia na plataforma. Nos últimos dois anos, o uso dos dois tipos de mídia e sua interação com o público passa por um equilíbrio, já que se observa que dentre os 1776 vídeos publicados, 1470 foram entre 2018 e 2020. Fato é que o tipo de conteúdo publicado pelo presidente mantém uma consistência coerente, somando uma média de 1.580.212 likes e 45.517 comentários, considerando todo o período coletado (março de 2013 a julho de 2020). O post com mais likes soma mais de três milhões (3.160.067) e o com mais comentários passa dos 300 mil (322.458)

Tão importante quanto aprofundar as etapas dos métodos utilizados, importa lembrar o porquê de entender os usos do presidente nessa plataforma faz sentido para a pesquisa em jornalismo: os discursos de crítica à imprensa, a descredibilização de veículos e repórteres, o posicionamento de porta-voz da “verdade” e o tecnopopulismo estão diretamente ligados ao ofício dos jornalistas. O modus operandi do discurso discriminatório de Bolsonaro também autoriza e reverbera nas caixas de comentários. Temos a percepção de que estamos mais diante de um estudo de cultura de fãs do que de uma pesquisa que procura entender o trabalho de figuras políticas em ambientes digitais.

Certamente este estudo inicial e exploratório merece muito mais diálogo com os campos já sugeridos, mas também com o jornalismo de dados, jornalismo de inovação, estudos de plataformas e redes. Futuramente teremos mais dados, insights e contribuições para partilhar por aqui.

Se você tem qualquer sugestão ou gostaria de entrar em contato, não hesite em comentar aqui mesmo ou escrever para amflores@fcsh.unl.pt.

Para saber mais sobre os approaches de Trend Studies, sugiro acompanhar o trabalho do Trends and Culture Management Lab (Universidade de Lisboa). Se seu interesse é entender melhor os Digital Methods, recomendo fortemente ler os vários projetos desenvolvidos no #SMARTDataSprint (iNOVA Media Lab/Universidade NOVA de Lisboa). Outra referência fundamental na área são os projetos realizados no Digital Methods Initiative (DMI/Universidade de Amsterdã).

Referências (por ordem que aparecem no texto)

FLORES, Ana Marta M. Jornalismo de inovação: os estudos de tendências como ferramenta de pesquisa. (Tese de Doutoramento). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2019.

LEWIS, David. Information Overload: Practical Strategies for Surviving in Today’s Workplace. London: Penguin Books, 1999.

CAPPRA, Ricardo. #datathinking2019 — Reflexões sobre o impacto dos dados na sociedade e nos negócios em 2019. Cappra Institute: online, 2019. Disponível em: <http://cappra.institute>.

NEWMAN, Nic; FLETCHER, Richard; KALOGEROPOULOS, Antonis; LEVY, David A. L.; NIELSEN, Rasmus Kleis. Reuters Institute Digital News Report 2017. Oxford: RISJ, 2017. Disponível em: <http://po.st/lfJFXh>.

VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; WAAL, Martijn. The Platform Society. Oxford; New York: Oxford University Press, 2018.

BELL, Emily; OWEN, Taylor. The platform press: how Silicon Valley reengineered journalism. Tow Center for Digital Journalism. Online, 2017. Disponível em: <http://towcenter.org/wpcontent/ uploads/2017/ 04/The_Platform_Press_Tow_Report_2017.pdf>.

ROGERS, Richard. Digital Methods. London: MIT Press, 2013.

OMENA, Janna Joceli (ed.). Métodos Digitais: Teoria-Prática-Crítica. Lisboa: ICNOVA, 2019.

RIEDER, Bernhard. Textanalysis. Computer software.(Version v0.2). Online, 2095. <http://labs.polsys.net/tools/textanalysis>.

MAURI, Michele; ELLI, Tommaso., CAVIGLIA, Giordio; UBOLDI, Giorgio& AZZI, Matteo. RAWGraphs: A Visualisation Platform to Create Open Outputs. New York: ACM, 2017.

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Ana Marta M. Flores
Nephi-Jor

PhD in journalism, fascinated by #trendstudies #innovation #fashion #digitalmethods ⨳ writes for iNOVA Media Lab | Nephi-Jor | Trends and Culture Management Lab