Superando o universalismo e a singularidade: Yuk Hui e uma visão em favor do local

Francilene Oliveira
Nephi-Jor
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4 min readJun 19, 2024
Imagem de Sarah N por Pixabay

Em um cenário em que a tecnologia vem se tornando cada vez mais atuante e presente em nossas vidas, o filósofo chinês Yuk Hui nos convida à reflexão propondo novos olhares sobre a singularidade e a universalidade. As ideias aqui apresentadas são discutidas no livro Tecnodiversidade (2020).

Muito tem se falado no Ocidente sobre o termo “singularidade”, quando a inteligência artificial supera a humana, e sobre a ideia transhumanista de que a ciência e a tecnologia ajudarão a criar uma espécie de ser humano mais evoluído. Yuk Hui faz um contraponto. Para ele, pensar a tecnologia dessa maneira é uma forma dos neorreacionários* assegurarem o que acreditam ser o “progresso” Ocidental, uma herança positivista com bases no Iluminismo, um entendimento de marcha constante e progressiva da sociedade. A tecnologia, para os neorreacionários, é vista de forma linear e universal para alcançar o progresso. Os ideais iluministas e positivistas são notadamente marcados pela oposição entre Natureza e Cultura. Hui os questiona em favor de um novo paradigma não antagônico, recursivo e circular.

A recursividade é a base das tecnologias complexas de hoje baseadas na Cibernética, como a Inteligência Artificial. Em “Cybernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina”, de 1948, Nobert Wiener propõe o fim da oposição entre orgânico e inorgânico sendo precursor das máquinas modernas circulares, recursivas e que assimilam comportamentos de organismos. A superação do dualismo pela Cibernética também é questionada por Hui por sua mera funcionalidade e também por seu desenvolvimento em um contexto bélico. Grandes potências passaram a priorizar pesquisas em tecnologia para assegurar o progresso positivista, ainda enxergando a tecnologia em uma única direção, sempre progressiva culminando na singularidade.

O universal é outro conceito apresentado pelo filósofo no decorrer dos capítulos. Hui, assim como Bruno Latour, compartilha o pensamento de Deleuze, que enfatiza a diferença e não o consenso. Na epígrafe do capítulo 4 “Máquina e Ecologia” apresenta as ideias de Deleuze e Guattari em “O que é a filosofia?” questionando o capitalismo como forma de impedimento do vir a ser dos povos sujeitados.

Para Hui, a universalização leva ao apagamento da diversidade e do outro. Ele questiona uma forma de entendimento do mundo que não consegue olhar para fora de si mesmo mostrando a consciência como um espaço de reflexão capaz de mudar as coisas a partir do reconhecimento de si como fundamental para o reconhecimento do outro, mesmo em sua contradição. Dessa forma, traz à luz os diferentes tipos de pensamentos e visões, não apenas entre o Ocidente e o Oriente, mas entre os diversos povos.

Segundo o autor, recolocar a questão da tecnologia é recusar um futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como única opção. Devemos pensar a tecnologia à luz da diversidade e nos tornarmos protagonistas em relação ao seu uso, enxergando-a de modo diverso e plural, resultado de conhecimentos e locais variados. Pensar a tecnologia como única e universal, apenas guiada pela racionalidade, tira o protagonismo humano e do que nos faz humanos.

A incapacidade de articular a relação entre localidade e tecnologia é apontada pelo filósofo como um dos maiores fracassos do séc. XX, pois a Cibernética em sua pretensa superação do dualismo, subestima o ambiente em sua mera funcionalidade. A partir disso, Hui pensa maneiras de reintroduzir a localidade no contexto tecnológico na perspectiva de construir futuros diferentes da dominação da ideologia transhumanista.

Questionando a singularidade e o universalismo, o filósofo defende um pensamento reflexivo em torno da tecnologia a partir da localidade com dois conceitos-chave: Tecnodiversidade e Cosmotécnica.

A Tecnodiversidade é uma proposta de Yuk Hui para combater o determinismo tecnológico na perspectiva de pensar a tecnologia fora dos paradigmas ocidentais levando em consideração especificidades culturais e filosóficas de diferentes locais. A Cosmotécnica refere-se à multiplicidade de técnicas caracterizadas por diferentes dinâmicas entre o cósmico, a moral e o técnico. Para Hui, a técnica sempre está localizada e corresponde a uma determinada cosmovisão.

Hui entende o local como resistência a um pensamento totalizante, que não está desconectado do global, mas se apropria dele. Em síntese, o filósofo questiona o universalismo e a singularidade como caminhos únicos e apresenta a localidade, a diversidade e a consciência como formas de superar o dualismo. Esses caminhos são formas de resistir que podem ser implementados a partir de outro conceito, a Cosmopolítica, uma reconfiguração da ordem mundial, uma reconciliação entre o universal e o particular, em que o “progresso” segue em várias direções envolvendo tecnologias desenvolvidas em contextos locais como parte da solução para problemas globais, como os ambientais, assim como a necessidade de uma política decolonial (ou contracolonial, como sugere o filósofo quilombola piauiense Antônio Bispo) que permita a existência de uma pluralidade de cosmotécnicas.

*No entendimento livre da autora, segundo Yuk Hui, neorreacionários são aqueles que defendem os privilégios e a dominação Ocidentais sobre outras formas de existência.

Bibliografia

HUI, Y. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu, 2020.

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Francilene Oliveira
Nephi-Jor

Doutoranda em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)