Violência epistêmica em tempos de COVID-19

Quais heróis serão lembrados depois dessa guerra? Quais nomes serão citados? Quem tem o privilégio de continuar o trabalho intelectual?

Imagem ilustrativa de Arek Socha por Pixabay

Enquanto escrevo esse texto o cenário é caótico, milhares estão morrendo todos os dias por puro descaso. Muitas dessas pessoas diretamente de COVID-19, outras mortes de minorias já neglicenciadas aumentaram pois em tempos de conflito nossa vida vale ainda menos. O Brasil não demonstra nenhuma estratégia consistente de combate ao vírus que está em ampla ascensão de casos, pelo contrário já fala em retomar a normalidade, como se nada estivesse acontecendo.

Um dado já bastante difundido é o aumento de violência doméstica no período de quarentena. Mulheres, crianças, idosos, LGBTs, pessoas com deficiência, se fala apenas do primeiro grupo, mas todos estes ficam um pouco mais vulneráveis entre quatro paredes. Mas essa não é também a única violências que estamos sofrendo.

Já é possível se observar uma diminuição das publicações de acadêmicas de mulheres, em boa parte da mídia se citam ideias de uma “meia duzia” de homens, positiva ou negativamente, quando se fala na pandemia. Nos espaços acadêmicos muitos nomes masculinos de grupos hegemônicos são lembrados. Parece mesmo que nosso papel ficou mesmo restrito a serviço essencial (pouco remunerado, sem quase nenhuma condição de trabalho e reconhecimento limitado e apenas simbólico) ou se fechar em casa nos trabalhos de limpeza e cuidado.

Em paralelo estamos no país sofrendo com vários ataques a pesquisa e a pós graduação, mesmo áreas vistas como prioritárias tem cortes e as humanidades estão sendo excluídas propositalmente. Ter uma bolsa de pós graduação voltou a ser um sonho distante para grande maioria dos já poucos interessados nesse caminho.

O desemprego está altíssimo também e sem nenhuma perspectiva de melhora. Com as flexibilizações de contratos, incertezas de cenário e tudo mais, quem costuma ficar mais de fora da priorização de contratação agora tem chances ínfimas de conseguir se colocar e manter no mercado de trabalho. O aumento de posts femininos de todo tipo de bolo e doces nos grupos do facebook são um sintoma claro disso.

O que me leva a pergunta: E quem vai ter o privilégio de escrever sobre o que estamos passando? Quais serão os pensamentos que serão validados? Quais nomes serão lembrados?

Por enquanto tudo demonstra que vai tudo se repetir como antes. Homens brancos europeus continuam sendo mais citados e reconhecidos independente do assunto, de haverem mulheres de destaque com conhecimento similar ou mais consistente, etc.

Afinal quando se fala em ciência e COVID-19 no Brasil que nome vêm nos vem a mente (apenas para dar um exemplo)? Átila Iamarino ou Nísia Trindade? Aliás, o primeiro que tem todo um trabalho de divulgação científica e de vez em quanto tem convidado pessoas pra falar nas lives. Mas dificilmente se comenta tanto da pessoa que ele convida se for uma mulher.

Já saiu até livro de sociólogo português sobre o tema! Enquanto isso praticamente todas mulheres acadêmicas que eu conheço está sobrecarregada de trabalho doméstico e tendo que dar um jeito pra manter o mínimo dos compromissos.

Só posso concluir com um apelo: dividam o trabalho doméstico, convidem mulheres e pessoas de outras minorias pra lives, entrevistas e afins, nos citem, nos questionem sobre o cenário atual, entendam que área da saúde não é só feita por médicos, apoiem publicações e trabalhos de países não-hegemônicos… Não nos deixe cair no esquecimento.

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