Nesse filme não acontece nada

Leandro Correia
Leandro Correia
Published in
4 min readJan 18, 2018

Em Boyhood, há uma cena próximo ao final do filme muito lembrada, onde a personagem vivida por Patricia Arquette explode e vomita todas as angustias que toda mãe, ou toda pessoa, tem ao chegar na meia idade. É uma cena bastante emblemática e meio que sintetiza a obra. Boyhood é um filme sobre o tempo, sobre crescer, sobre a vida, ordinária e banal e, ao decorrer de suas 3 horas de duração, nós assistimos basicamente aquilo que aparece no diálogo de Patricia Arquette, só que de maneira cadenciada, natural como a vida é. Boyhood foi bastante criticado — mais em fóruns da internet já que é um dos poucos filmes nota 100 do Metacritic — por ser um filme onde ~nada acontece~, mas até mesmo entre seus detratores essa cena seria a única boa do filme. Não é sintomático que entre quem não gostou do filme, a cena mais expositiva e explosiva seja justamente a mais querida?

Não quero fazer desse texto um manifesto pedante sobre como o cinema pipocão estragou a forma das pessoas consumirem filmes, mas é inegável que Hollywood segue uma fórmula com qual muito de nós crescemos consumindo — principalmente a geração pós anos 80 — e fica muito difícil digerir um filme que não segue esse padrão estético de montagem, roteiro, direção etc. Isso não significa que as farofas hollywoodianas sejam ruins, pelo contrário, tem coisa bem feita e divertida sendo lançada todos os anos. O problema é quando a gente acha que os filmes que fogem dessa fórmula são ruins.

comentário em uma postagem de um trailer no facebook

Na vida há momentos repletos de “nada” realmente preciosos. Como, por exemplo, quando vamos visitar a vovó, e ela faz um bolo de cenoura ou de fubá e nos mima enquanto pergunta se estamos nos alimentando bem. Ou quando moramos longe dos pais e vamos num almoço de domingo matar a saudade deles, da comida da mãe e, por algum momento, nos sentimos seguros e podemos esquecer as responsabilidades da vida adulta. Quando chamamos os amigos para ir em casa, ou vamos na casa de um deles, combinamos de levar bebida, comida e passar horas falando bobagem e podendo ser quem realmente somos, sem medo de julgamentos porque os amigos nos conhecem como ninguém. Quando conseguimos uma folga no trabalho para ficar em casa sem fazer nada, e somos surpreendidos por uma chuva gostosa de fim de tarde, onde podemos olhar pela janela e sentir aquela melancolia gostosa ouvindo uma música deprê ou vendo um filme na Netflix. Ou quando esse dia de folga acontece num dia bonito de sol pra ir num parque andar de bicicleta e levar o cachorro pra passear. Quando acordamos e vemos aquele sol nascente alaranjado, ou quando conseguimos comprar um ingresso para aquele show do artista favorito. Ou até quando recebemos aquela mensagem inesperada, daquela pessoa que achamos que já tinha nos esquecido.

Boyhood (2014)

Será que só os momentos realmente “fantásticos” são importantes? Sejam felizes ou trágicos? Até o dia em que vamos ficar ricos, casar, ou sofrer um acidente, existe uma longa jornada repleta dos momentos de “nada”. Provavelmente eles fazem parte de 99% da nossa vida, então são importantes pra caramba. E enxergar beleza neles é uma tarefa talvez difícil na correria do dia-a-dia, mas muito prazerosa. E o cinema também tem o direito de se debruçar sobre eles.

E para que esses momentos sejam bonitos no cinema, não precisam ser filmados com uma trilha sonora impactante e piruetas em forma de jogo de câmeras que potencialize algo que já é incrível por si só.

Nenhum filme é livre de críticas, isso é fato. A gente pode ter argumentos para falar mal até Cidadão Kane ou Vertigo, mas esse tipo de crítica que desmerece um filme com o argumento de que “nada de interessante acontece”, é realmente válida? Isso quando não são reduzidos a “white people problems”.

Michelangelo Antonioni, Ozu, entre tantos outros cineastas aclamados, construíram boa parte de sua filmografia justamente falando sobre esse nada, que na verdade significa tudo. Me lembro de uma cena de Também Fomos Felizes (1951) onde durante minutos acompanhamos uma conversa entre amigas em um restaurante. A cena não vai a lugar nenhum, não acrescenta nada ao roteiro enquanto desenvolvimento de personagens, mas é tão linda e gostosa de se ver que sem ela o filme não seria tão bom.

Beleza Americana (2000)

Às vezes, a forma como criticamos os filmes diz muito sobre nossa visão de mundo. Diz mais sobre nós mesmos do que sobre os próprios filmes.

--

--