Histórias que salvam

Ingrid Neuman
neu.in
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5 min readSep 22, 2017

Uma terapia alternativa para manutenção da saúde mental

Eu tive sorte quando era criança: além de ser filha de uma pessoa que sempre teve o hábito da leitura, cresci frequentando uma pequena biblioteca dentro do condomínio onde eu morava, na periferia de São Paulo. Antes mesmo dessa biblioteca ser construída a muitas mãos pelos próprios moradores, eu já preferia passar mais tempo com livros e filmes do que com outras crianças.

Ilustração de Camila Ortega

Fui me desenvolvendo e o que antes parecia só diversão, começou a trazer reflexões profundas sobre mim, sobre as pessoas e sobre o mundo. Virou meu hábito mais assíduo e meu refúgio em momentos difíceis. As histórias se tornaram minhas melhores amigas. Sempre que eu precisei de conselhos, elas nunca falharam. Quando alguma porta se fechava, elas me abriam inúmeras janelas e me faziam ver o mundo por outro ângulo a cada nova estrofe. E é por isso que eu acho o conceito de biblioterapia tão bonito e verdadeiro.

“A poesia, a música, uma pintura não salvam o mundo. Mas salvam o minuto.” Matilde Campilho

Ilustração de Cindy Wume

Segundo estudo de Clarisse Caldin, a biblioterapia visa a cura através da leitura de textos literários, além de propor práticas de leitura que proporcionem a interpretação do texto com o objetivo de melhorar o entendimento das emoções, clarear e tornar mais objetivas as maneiras de encarar e resolver problemas e oferecer a oportunidade de identificação e compensação. [1]

Para Caroline Shrodes, maior referência no assunto, “ a literatura ficcional é a mais indicada para garantir uma experiência emocional do leitor, efetivando a terapia de introspecção capaz de efetuar mudanças.” A autora também utiliza do conceito de Aristóteles sobre catarse para basear sua tese. [1]

Não parece ser por acaso que fábulas de Esopo, os contos compilados pelos irmãos Grimm e diversas histórias regionais — mesmo que apenas faladas — ainda estejam tão presentes na nossa cultura. Elas nos abrem os olhos e nos levam pelo caminho mais lúdico possível, criando situações fantásticas, finais inesperados e, muitas vezes, violentos e abruptos, nos deixando sós com a nossa imaginação.

Alguns locais como a School of Life de Londres e a The Therapist, em Portugal, já oferecem a terapia. Aqui no Brasil, já houve até um Projeto de Lei que solicitava a formalização da biblioterapia para uso no SUS.

“Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende” Valter Hugo Mãe

Eu pratico essa terapia de forma mais “livre” desde que me reconheço como leitora, e imagino que muitos leitores assíduos pelo mundo também têm essa terapia como um segredo não tão secreto assim. É que talvez os não praticantes — por mais que falemos abertamente sobre o quanto as histórias nos salvam — hesitem em acreditar.

Livros ou histórias que me marcaram

Nunca busquei racionalmente os livros que me marcaram. Esbarrei com eles numa conversa com amigas, lendo artigos aleatórios ou simplesmente passando horas lendo sinopses em livrarias e bibliotecas até que minha intuição dissesse que aquele era o livro certo para o momento. Entre erros e acertos, o saldo sempre é positivo.

O Dia do Curinga, de Jostein Gaarder

Li esse livro quando eu tinha 11 anos, no máximo. É um livro do Jostein Gaarder, famoso pelo best seller O Mundo de Sofia (que tentei ler duas vezes e não me identifiquei), também sobre filosofia. Sinto que Jostein escreveu de forma mais fluída em O Dia do Curinga. Ensina filosofia e questiona a sociedade através da prosa bem escrita e por um mundo paralelo vivido pela personagem principal. Esse livro é perfeito para crianças — de espírito ou idade — questionadoras. Passei a ver o mundo com olhos de Curinga depois de ler essa história.

Man Repeller, de Leandra Medine

Esse livro me salvou quando eu estava lendo livros que não conseguiam minha atenção e que estavam deixando minha vida mais cinza do que colorida. Foi meu primeiro livro lido no Kindle. Não estava procurando, mas o encontrei passeando pela loja da Amazon e decidi dar uma chance. É um livro muito leve em que Leandra conta um pouco da sua vida, suas escolhas e sobre o Man Repeller. É um relato engraçado de como é ser você mesma sem medo.

Tete à Tete, de Hazel Rowley

Amo a forma como encontrei esse livro. Eu já tinha lido uma boa parte d’O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, mas sabia muito pouco ou quase nada sobre a Simone. Fui ao CCSP e descobri que lá tinha uma biblioteca enorme. Fiz o cadastro e comecei um passeio que durou horas. O motivo foi esse livro. Logo na primeira prateleira dei de cara com essa biografia da relação nada convencional de Beauvoir e Sartre e não consegui parar de ler.

Escrita de forma simples e direta, conta a história dos dois desde quando se conheceram até seus últimos dias.

O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe

Ganhei esse livro em um dia muito especial pra mim. Já dava para sentir que esse livro entraria para a lista dos meus livros favoritos. Valter Hugo Mãe é sensível como nenhum outro autor ou autora que já li. Ele faz as metáforas mais lindas e faz a gente acreditar que a vida pode ser muito mais doce e gentil. Como se isso fosse pouco, Valter Hugo Mãe fez com que eu me encantasse com a língua portuguesa como eu me encantava quando criança.

As mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés

Duas amigas me indicaram esse livro por anos, mas eu nunca tinha me sentido chamada a lê-lo. Até que entrei em um período muito difícil emocionalmente e hoje reconheço como um dos períodos de maior transformação na minha vida. Essa transformação pareceu ser muito mais tranquila com a companhia da Clarissa. Li só esse livro por 8 meses, me dediquei 100% a ele e minha visão de mundo, de ser mulher e indivíduo na sociedade hoje é muito mais amplo. Leiam esse livro como se o mundo fosse acabar amanhã.

“As lágrimas derretem o coração enregelado” Clarissa Pinkola Estés

Com tantos casos relacionados à saúde mental nesses últimos tempos, espero que a biblioterapia possa ser colo de mais pessoas e que histórias sejam luzes que aquecem e incitam reação quando nada parece valer a pena.

[1] A LEITURA COMO FUNÇÃO TERAPÊUTICA: BIBLIOTERAPIA. Clarisse Caldin. https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/article/view/1518-2924.2001v6n12p32/5200

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