A busca por esquecer o que te faz mal. É possível apagar memórias ruins?

Aline Cardoso
NeuroBreak
Published in
7 min readOct 18, 2020

Resumo

Uma das funções mais importantes e complexas do cérebro é a memória, pois ela permite armazenar e recuperar informações de experiências passadas. Depois de passar por algum acontecimento traumático, é esperado que o indivíduo queira apagar qualquer lembrança relacionada a ele. Para a maioria das pessoas esse esquecimento ocorre naturalmente. No entanto, essas memórias persistem em indivíduos com transtorno de estresse pós traumático (TEPT), o que resulta em grande angústia e sofrimento. Alguns filmes e séries de ficção científica costumam explorar a ideia de fármacos ou cirurgias capazes de apagar apenas memórias ruins e assim ajudar pessoas com TEPT, mas será que isso é possível?

A busca por esquecer o que te faz mal

Uma das funções mais importantes e complexas do cérebro é a capacidade de aprender e memorizar. Chamamos de aprendizagem o processo de armazenamento de informações de experiências, passadas ou novas. Já a capacidade de lembrar das informações aprendidas, experienciadas ou percebidas, recebe o nome memória. Sem elas, não seria possível acessar o passado e nem imaginar ou planejar o futuro.

Para que a memória seja formada, é necessário que o sistema nervoso obtenha informações do ambiente. Essas informações podem variar em tempo, ou seja, de poucos segundos até horas e também podem envolver diferentes estímulos sensoriais, como visuais, auditivos, táteis etc. Além disso, é preciso ter atenção à informação recebida para que haja formação de memória.

Depois de passar por uma experiência angustiante, dolorosa ou até mesmo traumática, é normal não querer lembrar do acontecimento. Para a maioria das pessoas, essas memórias acabam sendo naturalmente deixadas de lado com o passar do tempo. Entretanto, em pessoas com transtorno de estresse pós traumático (TEPT) essas memórias persistem por um longo período de tempo — sendo essa uma característica fundamental para diagnóstico do transtorno.

!SPOILER!

Alguns filmes e séries de ficção científica costumam explorar a ideia de fármacos ou cirurgias capazes de apagar apenas memórias ruins.

Mas será que isso é possível na vida real?

Essa pergunta me ocorreu quando assisti, recentemente, a série Homecoming que conta a história de uma clínica que ajuda soldados com TEPT na transição para a vida civil. No começo, a série não esclarece como essa “ajuda” é proporcionada, mas no decorrer você descobre que a empresa usa os soldados como cobaias para testar um novo fármaco, capaz de apagar memórias de traumas da guerra.

Mas antes de falarmos sobre isso, é preciso entender um pouco mais sobre memórias.

Sobre memória

Não se sabe detalhadamente como as memórias são formadas, mas se sabe que as sinapses têm grande importância para formação e manutenção delas. As sinapses são regiões de contato entre neurônios por onde são transmitidos os impulsos nervosos. Essas conexões sinápticas entre os neurônios garantem ao cérebro a facilidade de se adaptar a diferentes situações. Assim, as sinapses podem ser fortalecidas ou enfraquecidas ao longo do tempo, em resposta a aumentos ou diminuições de sua atividade. A essa capacidade é dado o nome de plasticidade sináptica, um processo essencial para o desenvolvimento da aprendizagem e memória.

Por isso, consideramos “exercícios para o cérebro” as atividades como conhecer novos lugares, ler novos livros, fazer palavras cruzadas ou sudoku, pois elas podem levar ao aumento da atividade sináptica e auxiliar no seu fortalecimento.

Ao contrário do senso comum, o processo de esquecer é algo natural. Algumas teorias sugerem que o esquecimento acontece, pois novas informações substituem as antigas. Outras sugerem que informações são facilmente esquecidas se recebidas com desatenção. Além disso, as memórias não são feitas pra durar para sempre.

Por exemplo,

A memória imediata dura apenas poucos segundos. Já a memória de curto prazo nos permite lembrar de informações por alguns segundos até minutos. A memória de longo prazo nos permite guardar informações por dias, meses ou anos, mas para que isso aconteça é necessário que essas memórias sejam reforçadas.

No caso dos pacientes com TEPT, o esquecimento pode ser dificultado por conta de estímulos ambientais relacionados ao trauma. Isso pode levar a pessoa a reviver essas memórias, reforçando-as. Como é o caso de pessoas que param de usar o carro após sofrerem algum acidente de trânsito. Outro exemplo é o de soldados que revivem lembranças dos acontecimentos da guerra mesmo após retornarem à vida civil.

Esse é exemplo pode soar bem comum para você e não é à toa. Isso porque o TEPT foi reconhecido pela primeira vez em soldados sobreviventes da Guerra Civil Americana. Também foi visto após a 1ª e 2ª Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã. Mas foi apenas em 2002 que o New England Journal of Medicine publicou um editorial e uma revisão chamando a atenção para o transtorno.

A vida e a arte se imitam

Se você gosta de filmes e séries de ficção científica já deve ter reparado como Hollywood tenta dar soluções mirabolantes para problemas atuais. Mas pra sua — e minha — surpresa, nem sempre essas soluções são tão absurdas. Faz tempo que quero escrever sobre a série Homecoming… Por mais que a série tenha seu lado hollywoodiano, talvez essa seja uma das poucas séries de ficção científica que se preocupou com a ciência. A série traz informações importantes sobre TEPT e ideias plausíveis sobre “manipulação de memórias”. Agora você deve estar se perguntando:

“Mas o que tem de plausível nesse assunto?”.

Vou explicar!

Ainda que recentes, as pesquisas sobre a possível remoção de memórias desagradáveis têm sido de grande interesse. Isso porque a inativação dessas memórias poderia dar alívio a pessoas que sofreram ou testemunharam acontecimentos traumáticos, e quem sabe evitar transtornos psiquiátricos como o TEPT. Outro conceito importante que a série traz é o uso medicamentos para apagar tais memórias. Na vida real, cientistas têm pesquisado sobre um exemplo um possível medicamento que impediria as memórias ruins de serem reforçadas, ou seja, impediria que elas se tornassem memórias de longo prazo.

Tudo isso parece muito bom, mas a grande questão é:

como apagar apenas as memórias ruins?

Essa pergunta nem a ciência da série, nem a ciência da vida real ainda não conseguiram responder. Assim como na série, não sabemos qual seria o efeito desses medicamentos sobre todas as outras memórias, que não as desagradáveis. Além disso, ainda não se sabe exatamente como as memórias estão armazenadas no cérebro e nem como diferenciá-las.

Assim, atingir uma memória específica ainda não é algo possível, e ouso desse tipo de medicamento seria extremamente perigoso.

Na série, os personagens que tiveram suas memórias apagadas conseguiram reativar parte delas ao serem confrontados com estímulos ambientais relacionados às lembranças, por exemplo, ao conversarem com amigos que conheciam na época ou visualizar objetos antigos. Um artigo de 2014 intitulado “Engenheirando uma memória com LTP e LTD” (livre tradução) mostrou um resultado semelhante e bastante promissor. A pesquisa, feita em camundongos, propõe que memórias poderiam ser inativadas e reativadas através de modificações da força das conexões sinápticas.

Mas na vida real e em humanos, sabemos que algumas memórias esquecidas naturalmente — em condições não patológicas — até podem ser relembradas, mas não sabemos se o mesmo aconteceria com lembranças ativamente apagadas.

The end

Como vimos, é possível tirar proveito de muitas informações obtidas da ficção científica, mas é preciso cautela para filtrar as informações e pesquisá-las mais a fundo. Além disso, tanto na vida real quanto na ficção, é através da pesquisa científica que conseguimos avançar nos conhecimentos sobre memória, esquecimento, TEPT, a vida o universo e tudo mais. E é através desses conhecimentos que conseguimos ajudar pessoas com doenças relacionadas a memória, como TEPT e Alzheimer.

Mas enquanto as soluções mirabolantes propostas pela ficção ainda não existem na nossa realidade, cabe a nós acreditar e confiar nas pesquisas científicas para termos nosso “felizes para sempre”.

Referências

Lavazza, A. (2015). Erasing traumatic memories: when context and social interests can outweigh personal autonomy. Philosophy, Ethics, and Humanities in Medicine, 10(1), 3.

Cain, C. K., Maynard, G. D., & Kehne, J. H. (2012). Targeting memory processes with drugs to prevent or cure PTSD. Expert opinion on investigational drugs, 21(9), 1323–1350.

Nabavi, S., Fox, R., Proulx, C. D., Lin, J. Y., Tsien, R. Y., & Malinow, R. (2014). Engineering a memory with LTD and LTP. Nature, 511(7509), 348–352.

Série Homecoming na Amazon Prime

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Aline Cardoso
NeuroBreak

Estudando o comportamento humano e tentando entender o meu; (ela/dela); Doutoranda em Fisiologia — Neurociência (UFRJ); Brasil