Memórias e Experiências

Vinicius Martins
Neuro&UX
Published in
12 min readApr 3, 2022

Como a memória é formada e serve de base para as experiências humanas

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Kandel

A descoberta e a pesquisa são processos fundamentais para UX Designers construírem boas experiências. Uma das etapas é conhecer o público-alvo, onde buscamos entender as características das pessoas para saber como será a interação com determinada experiência.

Uma das metodologias utilizadas é a análise de personas, onde existem 3 maneiras diferentes de acordo com a Nielsen Norman Group, nas quais as equipes podem criar personas, dependendo dos dados de pesquisa em que estão enraizadas:

Proto personas: Destinadas a alinhar rapidamente as suposições existentes da equipe sobre quem são seus usuários, mas não com base em (novas) pesquisas.

Personas qualitativas: Com base em pesquisas qualitativas de pequenas amostras, como entrevistas, testes de usabilidade.

Personas estatísticas: onde a pesquisa qualitativa inicial informa um instrumento de pesquisa que é usado para reunir um grande tamanho de amostra, e as personas emergem da análise estatística.

Entender o comportamento das pessoas que irão vivenciar essas experiências planejadas por nós é uma das peças fundamentais do design.

O ser humano é a única espécie que atribui valor semântico a uma memória consciente ou inconsciente. O comportamento é consequência do que ele aprende durante a vida e que ficou na memória.

O conceito de experiência

Na obra Crítica da Razão Pura, uma das mais importantes da filosofia ocidental e que revolucionou a forma como lidamos com o conhecimento, o filósofo prussiano Immanuel Kant(1724–1804) diz que onde tiver uma experiência humana haverá sensação e intelecto.

Retrato de Kant, pintura feita a óleo por Gemälde von Becker. Ano: 1768. Local atual: Museu Nacional Schiller, cidade de Marbach na Alemanha.
Retrato de Kant, pintura feita a óleo por Gemälde von Becker. Ano: 1768. Local atual: Museu Nacional Schiller, cidade de Marbach na Alemanha. Link: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Kant_gemaelde_3.jpg

O intelecto estrutura o conteúdo das sensações que chegam ao corpo através dos sentidos. Nós não sabemos como as coisas são, sem antes passar pelas sensações e intelecto. E o que achamos sobre algo é resultado deste filtro. Ou seja, só conhecemos o mundo e os objetos através das experiências que temos com eles.

Print screen de um vídeo do Youtube sobre Epistemologia de Immanuel Kant, do canal Isto não é filosofia. Possui um slide com o Título: Cognição Humana. No slide tem um círculo no meio e dentro as palavras: sensações e intelecto. Do lado esquerdo do círculo está a palavra antes e em cima dela a palavra coisa, do lado direito está uma imagem de um livro com a frase: objeto sentido e pensado. Antes é uma coisa, e depois de passar pelo círculo da sensação e intelecto se transforma em um objeto senti
https://www.youtube.com/watch?v=TEm3HHJYKjs

O processo de sentir e pensar ocorre ao mesmo tempo, através disso a gente atrela propriedades que não temos como dizer se estão nelas mesmas.

As primeiras experiências são a base para as novas

Quando somos bebês e crianças estamos criando nossas primeiras experiências de vida, que servirão de base para as próximas. Através disso criamos circuitos neurais(comunicação entre neurônios de áreas distintas do cérebro) e a construção de significados.

Talvez você não se lembre, mas por exemplo:

A primeira vez que você teve contato com um lápis na vida, provavelmente se deparou com um objeto no mínimo estranho, com formato próprio, com ponta e fazendo barulho. Até esse momento você só teria visto pêndulos, brinquedos e etc.

Quando um adulto pega esse objeto estranho, pontiagudo e começa a fazer um traçado que cria um som, isso chama a sua atenção. É um estímulo visual e auditivo novo, do qual você nunca sentiu.

Como qualquer criança, você começa a esticar a mão para pegar. Mas o adulto diz: “Isso não pode, o lápis é para escrever”. E logo em seguida movimenta outro objeto para mudar a sua atenção.

O fenômeno latente nesta situação é a atividade visual. Através da retina, essa atividade está mandando sinais elétricos para várias partes do cérebro, inclusive ao córtex. Alguns sons são às vezes conhecidos, mas o estímulo sonoro “lápis” é completamente novo. Nesta experiência, você não formou um circuito, mas começou a ter uma atividade neural primitiva que correlaciona a imagem e som ao objeto.

https://drjoaovitorino.com.br/principais-areas-eloquentes-cerebrais/

Outras experiências virão com aquele objeto, e poderão reforçar esse momento. Poderá ver o adulto utilizando o lápis, encontrá-lo e utilizar riscando o chão, a parede ou realizar qualquer outra experiência. Isso ficará mais valioso do ponto de vista emocional, a cada nova experiência que tenha com o objeto. Esse conjunto de circuitos neurais formados estarão na região visual, do tato e da audição.

Foto de uma criança em seu quarto segurando um papel com desenhos feitos por ela
https://unsplash.com/photos/RwCP91RwZeM

Entre essas três áreas citadas, irá se formar o ponto de contato que foi ativado pelos sentidos. O ponto onde esses circuitos se conectam é a área de Wernicke, responsável pela linguagem. Esta área cria os circuitos que dão os significados para a palavra “lápis”, derivados das experiências obtidas até o momento.

Vale ressaltar que essas imagens não são atividades de neurônios, mas sim a dilatação dos vasos sanguíneos do encéfalo no hemisfério esquerdo. Os neurônios produzem cargas elétricas, ou seja, é assim como ocorrem as conexões e a criação de circuitos entre eles. Para produzir carga elétrica nosso corpo consome glicose e gera CO2(Gás Carbônico). O CO2 cria a vasodilatação que ao mesmo tempo gasta oxigênio, assim aumentando o fluxo sanguíneo de uma determinada região.

Então é através das experiências que conseguimos atribuir semântica a determinado objeto, toque, som, gosto e cheiro. Portanto, o intelecto organiza o conteúdo adquirido através das sensações, exatamente como Kant elaborou na obra a “Crítica da Razão Pura”.

“Sem a memória, nossas experiências seriam retalhadas em vários fragmentos, assim como os momentos de nossa vida” — Eric Kandel

A forma como nosso cérebro armazena essas sensações e pensamentos que construímos através das experiências tem um nome: memória.

Eric Kandel é um neurocientista austríaco e vencedor do Nobel de Fisiologia em 2000, onde recebeu o prêmio por descobertas envolvendo a transmissão de sinais entre células nervosas no cérebro humano. Kandel escreveu um livro sobre esse trabalho chamado: “Em busca da memória” e existe um documentário excelente no Youtube que mostra um pouco sobre esses estudos. É interessante que neste filme somos apresentados a dois grandes amigos de Kandel, Micky Stunkard(um dos primeiros a escrever sobre os transtornos alimentares) e Aaron Beck (criador da TCC — Terapia Cognitivo Comportamental).

https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2000/kandel/facts/

As pesquisas de Kandel foram realizadas com testes em um animal muito simples chamado — Aplysia californica, onde o Nobel de Fisiologia revelou aspectos fundamentais do processo de formação de memórias.

Mostrou que as memórias de curto e longo prazo são formadas por sinais diferentes e isso acontece em todos os animais que aprendem, dos moluscos ao homem.

“Sem a memória, nossas experiências seriam retalhadas em vários fragmentos, assim como os momentos de nossa vida. Ela nos dá uma imagem coerente do passado e traz as experiências atuais à nossa perspectiva” — Eric Kandel.

Construção da memória

Os estudos de Kandel com a Aplysia californica mostraram a capacidade plástica do sistema nervoso de acordo com as experiências. Esse fenômeno é conhecido como neuroplasticidade.

Existem alguns tipos de neuroplasticidade e a que iremos abordar será a plasticidade sináptica, que biologicamente é composta por:

Neurogênese: Formação de novos neurônios
Sinaptogênese: Formação de novas sinapses

A Aplysia é uma espécie de lesma do mar que possui uma cabeça e cauda. Existe um lugar onde tem um sifão que é a abertura da brânquia. Quando o animal é tocado em qualquer parte do corpo ele retrai o sifão e a brânquia, liberando uma tinta como resposta de defesa para confundir o predador. Através desse comportamento, a equipe de pesquisadores conseguiu demonstrar os mecanismos biológicos que constroem a habituação, a sensibilização e o condicionamento clássico. Cada uma dessas circunstâncias são importantes para a plasticidade sináptica e moldam o comportamento dos animais, inclusive do ser humano.

Foto da lesma do mar Aplysia californica
:http://www.underwaterkwaj.com/nudi/california/c010.htm

Pesquisas com animais são muito comuns na área da neurociência, pois permitem investigar comportamentos chave que são conservados entre as espécies, além de facilitar a investigação de aspectos genéticos e biomoleculares, pois consegue-se acessar com maior facilidade tecidos e materiais biológicos. Ainda que o poder de translação possa ter limitações de espécie para espécie, pode-se considerar que dados provenientes de estudos com modelos animais quando bem interpretados possuem uma validade e capacidade de translação para os seres humanos.

A habituação, sensibilização e condicionamento clássico são circunstâncias importantes para a plasticidade sináptica e moldam o comportamento dos animais, inclusive dos seres humanos.

Como o cérebro constrói novos conhecimentos

Habituação

Para entender o fenômeno da habituação, os cientistas realizaram alguns testes produzindo um estímulo em uma região sensível da Aplysia, que é a entrada do sifão, e no momento do estímulo o animal retrai o sifão. Existem neurônios sensitivos ligados ao sifão, que geram uma atividade elétrica toda vez que o sifão sofre um contato. Essa atividade elétrica é transmitida para os neurônios motores que liberam Glutamato que produz a contração do músculo que retrai o sifão.

À medida que eram reproduzidos muitas vezes esse estímulo e sem consequências, não houve mais contração do músculo e retração do sifão.

O sistema nervoso desenvolveu uma habituação, onde os neurônios sensitivos não transmitiam a atividade elétrica para os neurônios motores e o sistema motor parava de gerar resposta. Essa transmissão de eletricidade é interrompida por interneurônios que modelam a plasticidade e fazem com que a atividade inibitória seja maior que a excitatória, pois no momento que o sifão foi estimulado, não houve lesões e consequências.

O mesmo acontece com o ser humano, porém em uma escala de maior complexidade.

Existem diversos exemplos, como quando uma pessoa utiliza óculos e no começo ela sente o contato do objeto com o corpo. Mas após um certo tempo de uso, deixa de perceber o estímulo causado pelo objeto. A presença mecânica do objeto no corpo não gera mais uma resposta. Ou então ao utilizar uma roupa, relógio ou aliança que após um tempo é sentido mais no corpo, porém após ser retirado é sentida a ausência do objeto.

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Sensibilização

É quando o sistema nervoso responde estímulo fraco como se fosse um forte e nocivo.

Quando gerado um estímulo forte, o interneurônio facilitador fez que a resposta motora fosse ampliada e o animal emitisse uma tinta(utilizada para defesa contra predadores).

Ele pressentiu que o estímulo forte deve ser notado, pois causa uma lesão. Isso gera uma resposta plástica que os interneurônios excitatórios geram maior resposta que os inibitórios, fazendo que reaja com mais força e a quantidade de tinta aumente nos quadros de sensibilização.

Um estímulo que não produziria a emissão de tinta do animal, agora produz esse comportamento.

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Condicionamento clássico

O condicionamento clássico é um processo vinculado ao fisiologista Ivan Pavlov(1849–1936) de grande importância para o entendimento da escolha dos nossos comportamentos.

Seguindo a mesma lógica da sensibilização, porém o condicionamento existe a diferença que não precisa ser o mesmo estímulo para gerar a mesma resposta.

Podemos pegar como exemplo o famoso teste de Pavlov, em que apresentava-se para um cão o sinal de uma campainha e em seguida um alimento. Após a reprodução desses estímulos, o animal salivava apenas com a provocação sonora e sem precisar do alimento.

A diferença do condicionamento clássico para a sensibilização, é que no condicionamento os estímulos são diferentes: o primeiro é inócuo e o segundo provoca a resposta. O sistema nervoso tem que fazer uma associação de um estímulo que não possui nenhuma ligação com o outro para gerar a resposta antecipatória. O animal associa o estímulo eficaz ao inócuo e passa a responder também quando ele é aplicado sozinho.

Capacidade de associação entre significados

O sistema emocional é responsável por reforçar a associação das áreas neurais estimuladas pelas experiências, as principais áreas são: amígdala, hipocampo e núcleo accumbens. Ou seja, a memória não se encontra no córtex, mas sim nesta estrutura que tem o papel de manter esses circuitos ativados.

Desenho do cerébro humano e sua estrutura
http://www.waldman-music.com/blog/descubra-quais-areas-do-nosso-cerebro-estao-relacionadas-a-musica/

Esse sistema é capaz de associar através das conexões com ele diferentes conexões neurais geradas pelas experiências. É por isso que o animal consegue associar a compainha com o alimento, pois as áreas no cérebro são distantes e não é trivial conectar elas. Aos poucos que isso é fortalecido, o caminho entre esses neurônios também é facilitado.

Construção das memórias através das experiências

Os sinais que vêm dos sentidos fazem conexões sinápticas e terminam nas células do hipocampo, que continuam fazendo conexões na mesma área.

O valor emocional que nosso cérebro dá a experiência é feito através da dopamina e serotonina. Esses neurotransmissores ativam um sistema modulatório de neuroplasticidade. Eles liberam substâncias transmissoras químicas e agem na fortificação da conexão sináptica. Através desta fortificação, não temos apenas um terminal no hipocampo, mas vários outros. Quando voltarmos a lembrar desta experiência, teremos mais conexões e referências. Agora esta memória está impressa permanentemente no nosso cérebro pelo valor emocional que foi agregado a ela. Desta forma, as emoções alteram permanentemente os genes das células nervosas que foram as incentivadoras a criar as novas conexões sinápticas.

Essas conexões sinápticas sob circunstâncias apropriadas podem persistir durante toda a nossa existência.

Como acontece do ponto de vista físico?

Através de um fenômeno elétrico que ocorre no cérebro chamado de Potencialização de Longa Duração(LTP) e foi descoberto por Timothy Bliss e Terje Lomo na região do hipocampo, onde é o local que isso mais acontece.

Quando acontece um estímulo que ativa o hipocampo, a LTP pode demorar minutos ou horas e ativam os colaterais de Schaffer são axônios colaterais emitidos pelas células piramidais CA3 do hipocampo que ficam na região da CA3 e CA1 da imagem. Quanto mais tempo foram ativados, acontece maior atividade e duração entre os neurônios. E assim o cérebro consegue correlacionar os estímulos que estão ocorrendo em áreas distintas fazendo com que essas conexões fiquem fortalecidas durante o tempo que ocorre o estímulo. A partir de um momento que esse estímulo for reproduzido diversas vezes durante um certo tempo, as conexões entre o córtex que foram fortalecidas pelo hipocampo desenvolvem suas próprias conexões, passando a ficar independente dele.

Esse fenômeno quanto maior o tempo que ele é reproduzido, maior é o número de receptores na pós sinapse.

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As reações químicas que ocorrem durante a LTD não são nada simplórias, mas para resumidamente elas ocorrem pela liberação de Glutamato pelos neurônios pré-sinápticos dentro do hipocampo na região da CA1. O Glutamato age sobre dois receptores pós-sinápticos do tipo AMPA(aumenta a saída de potássio) e NMDA(aumenta a entrada de cálcio), ambos acabam se potencializando e aumentam a atividade neuronal. Existe um outro elemento importante neste fenômeno que é a ação de neurotransmissores gasosos que podem ser óxido nítrico(NO) e os receptores canabinóides do tipo CB1 ou CB2, que geram um sinal retrógrado e aumentam a liberação de neurotransmissores gerando mais atividade elétrica.

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Esquecer é tão importante quanto lembrar

Um fenômeno tão importante quanto a LTD é a Depressão de Longo Prazo(LTP), que do ponto de vista teórico é bem semelhante à LTD, por ser também um mecanismo elétrico de longa duração que altera a dinâmica da plasticidade sináptica. Mas diferente da LTD que aumenta a atividade elétrica dos circuitos, a LTP é responsável por diminuir. O motivo de um mecanismo de memória diminuir a atividade elétrica de alguns circuitos, é causado toda vez que o córtex identifica um repertório comportamental que leva a uma decisão inadequada ou perda funcional, desta forma enfraquecendo o circuito que gerou o resultado errado. Irei abordar o fenômeno da LTP em um próximo texto que envolve o cerebelo.

Conhecer o ser humano é entender suas histórias, suas experiências, sentimentos e valores agregados a esses fatores. Os processos biológicos do cérebro que constroem a memória são importantes, pois moldam a visão interna e externa que as pessoas possuem e tornam-se únicas.

Este artigo está repleto de generalizações simplificadas, sendo um recorte do assunto. Se você quer saber de fato sobre, terá que ler mais.

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Vinicius Martins
Neuro&UX

Product Designer, pós-graduando em Neurociências e Comportamento pela PUC-RS