Memórias e Experiências
Como a memória é formada e serve de base para as experiências humanas
A descoberta e a pesquisa são processos fundamentais para UX Designers construírem boas experiências. Uma das etapas é conhecer o público-alvo, onde buscamos entender as características das pessoas para saber como será a interação com determinada experiência.
Uma das metodologias utilizadas é a análise de personas, onde existem 3 maneiras diferentes de acordo com a Nielsen Norman Group, nas quais as equipes podem criar personas, dependendo dos dados de pesquisa em que estão enraizadas:
Proto personas: Destinadas a alinhar rapidamente as suposições existentes da equipe sobre quem são seus usuários, mas não com base em (novas) pesquisas.
Personas qualitativas: Com base em pesquisas qualitativas de pequenas amostras, como entrevistas, testes de usabilidade.
Personas estatísticas: onde a pesquisa qualitativa inicial informa um instrumento de pesquisa que é usado para reunir um grande tamanho de amostra, e as personas emergem da análise estatística.
Entender o comportamento das pessoas que irão vivenciar essas experiências planejadas por nós é uma das peças fundamentais do design.
O ser humano é a única espécie que atribui valor semântico a uma memória consciente ou inconsciente. O comportamento é consequência do que ele aprende durante a vida e que ficou na memória.
O conceito de experiência
Na obra “Crítica da Razão Pura”, uma das mais importantes da filosofia ocidental e que revolucionou a forma como lidamos com o conhecimento, o filósofo prussiano Immanuel Kant(1724–1804) diz que onde tiver uma experiência humana haverá sensação e intelecto.
O intelecto estrutura o conteúdo das sensações que chegam ao corpo através dos sentidos. Nós não sabemos como as coisas são, sem antes passar pelas sensações e intelecto. E o que achamos sobre algo é resultado deste filtro. Ou seja, só conhecemos o mundo e os objetos através das experiências que temos com eles.
O processo de sentir e pensar ocorre ao mesmo tempo, através disso a gente atrela propriedades que não temos como dizer se estão nelas mesmas.
As primeiras experiências são a base para as novas
Quando somos bebês e crianças estamos criando nossas primeiras experiências de vida, que servirão de base para as próximas. Através disso criamos circuitos neurais(comunicação entre neurônios de áreas distintas do cérebro) e a construção de significados.
Talvez você não se lembre, mas por exemplo:
A primeira vez que você teve contato com um lápis na vida, provavelmente se deparou com um objeto no mínimo estranho, com formato próprio, com ponta e fazendo barulho. Até esse momento você só teria visto pêndulos, brinquedos e etc.
Quando um adulto pega esse objeto estranho, pontiagudo e começa a fazer um traçado que cria um som, isso chama a sua atenção. É um estímulo visual e auditivo novo, do qual você nunca sentiu.
Como qualquer criança, você começa a esticar a mão para pegar. Mas o adulto diz: “Isso não pode, o lápis é para escrever”. E logo em seguida movimenta outro objeto para mudar a sua atenção.
O fenômeno latente nesta situação é a atividade visual. Através da retina, essa atividade está mandando sinais elétricos para várias partes do cérebro, inclusive ao córtex. Alguns sons são às vezes conhecidos, mas o estímulo sonoro “lápis” é completamente novo. Nesta experiência, você não formou um circuito, mas começou a ter uma atividade neural primitiva que correlaciona a imagem e som ao objeto.
Outras experiências virão com aquele objeto, e poderão reforçar esse momento. Poderá ver o adulto utilizando o lápis, encontrá-lo e utilizar riscando o chão, a parede ou realizar qualquer outra experiência. Isso ficará mais valioso do ponto de vista emocional, a cada nova experiência que tenha com o objeto. Esse conjunto de circuitos neurais formados estarão na região visual, do tato e da audição.
Entre essas três áreas citadas, irá se formar o ponto de contato que foi ativado pelos sentidos. O ponto onde esses circuitos se conectam é a área de Wernicke, responsável pela linguagem. Esta área cria os circuitos que dão os significados para a palavra “lápis”, derivados das experiências obtidas até o momento.
Vale ressaltar que essas imagens não são atividades de neurônios, mas sim a dilatação dos vasos sanguíneos do encéfalo no hemisfério esquerdo. Os neurônios produzem cargas elétricas, ou seja, é assim como ocorrem as conexões e a criação de circuitos entre eles. Para produzir carga elétrica nosso corpo consome glicose e gera CO2(Gás Carbônico). O CO2 cria a vasodilatação que ao mesmo tempo gasta oxigênio, assim aumentando o fluxo sanguíneo de uma determinada região.
Então é através das experiências que conseguimos atribuir semântica a determinado objeto, toque, som, gosto e cheiro. Portanto, o intelecto organiza o conteúdo adquirido através das sensações, exatamente como Kant elaborou na obra a “Crítica da Razão Pura”.
“Sem a memória, nossas experiências seriam retalhadas em vários fragmentos, assim como os momentos de nossa vida” — Eric Kandel
A forma como nosso cérebro armazena essas sensações e pensamentos que construímos através das experiências tem um nome: memória.
Eric Kandel é um neurocientista austríaco e vencedor do Nobel de Fisiologia em 2000, onde recebeu o prêmio por descobertas envolvendo a transmissão de sinais entre células nervosas no cérebro humano. Kandel escreveu um livro sobre esse trabalho chamado: “Em busca da memória” e existe um documentário excelente no Youtube que mostra um pouco sobre esses estudos. É interessante que neste filme somos apresentados a dois grandes amigos de Kandel, Micky Stunkard(um dos primeiros a escrever sobre os transtornos alimentares) e Aaron Beck (criador da TCC — Terapia Cognitivo Comportamental).
As pesquisas de Kandel foram realizadas com testes em um animal muito simples chamado — Aplysia californica, onde o Nobel de Fisiologia revelou aspectos fundamentais do processo de formação de memórias.
Mostrou que as memórias de curto e longo prazo são formadas por sinais diferentes e isso acontece em todos os animais que aprendem, dos moluscos ao homem.
“Sem a memória, nossas experiências seriam retalhadas em vários fragmentos, assim como os momentos de nossa vida. Ela nos dá uma imagem coerente do passado e traz as experiências atuais à nossa perspectiva” — Eric Kandel.
Construção da memória
Os estudos de Kandel com a Aplysia californica mostraram a capacidade plástica do sistema nervoso de acordo com as experiências. Esse fenômeno é conhecido como neuroplasticidade.
Existem alguns tipos de neuroplasticidade e a que iremos abordar será a plasticidade sináptica, que biologicamente é composta por:
Neurogênese: Formação de novos neurônios
Sinaptogênese: Formação de novas sinapses
A Aplysia é uma espécie de lesma do mar que possui uma cabeça e cauda. Existe um lugar onde tem um sifão que é a abertura da brânquia. Quando o animal é tocado em qualquer parte do corpo ele retrai o sifão e a brânquia, liberando uma tinta como resposta de defesa para confundir o predador. Através desse comportamento, a equipe de pesquisadores conseguiu demonstrar os mecanismos biológicos que constroem a habituação, a sensibilização e o condicionamento clássico. Cada uma dessas circunstâncias são importantes para a plasticidade sináptica e moldam o comportamento dos animais, inclusive do ser humano.
Pesquisas com animais são muito comuns na área da neurociência, pois permitem investigar comportamentos chave que são conservados entre as espécies, além de facilitar a investigação de aspectos genéticos e biomoleculares, pois consegue-se acessar com maior facilidade tecidos e materiais biológicos. Ainda que o poder de translação possa ter limitações de espécie para espécie, pode-se considerar que dados provenientes de estudos com modelos animais quando bem interpretados possuem uma validade e capacidade de translação para os seres humanos.
A habituação, sensibilização e condicionamento clássico são circunstâncias importantes para a plasticidade sináptica e moldam o comportamento dos animais, inclusive dos seres humanos.
Como o cérebro constrói novos conhecimentos
Habituação
Para entender o fenômeno da habituação, os cientistas realizaram alguns testes produzindo um estímulo em uma região sensível da Aplysia, que é a entrada do sifão, e no momento do estímulo o animal retrai o sifão. Existem neurônios sensitivos ligados ao sifão, que geram uma atividade elétrica toda vez que o sifão sofre um contato. Essa atividade elétrica é transmitida para os neurônios motores que liberam Glutamato que produz a contração do músculo que retrai o sifão.
À medida que eram reproduzidos muitas vezes esse estímulo e sem consequências, não houve mais contração do músculo e retração do sifão.
O sistema nervoso desenvolveu uma habituação, onde os neurônios sensitivos não transmitiam a atividade elétrica para os neurônios motores e o sistema motor parava de gerar resposta. Essa transmissão de eletricidade é interrompida por interneurônios que modelam a plasticidade e fazem com que a atividade inibitória seja maior que a excitatória, pois no momento que o sifão foi estimulado, não houve lesões e consequências.
O mesmo acontece com o ser humano, porém em uma escala de maior complexidade.
Existem diversos exemplos, como quando uma pessoa utiliza óculos e no começo ela sente o contato do objeto com o corpo. Mas após um certo tempo de uso, deixa de perceber o estímulo causado pelo objeto. A presença mecânica do objeto no corpo não gera mais uma resposta. Ou então ao utilizar uma roupa, relógio ou aliança que após um tempo é sentido mais no corpo, porém após ser retirado é sentida a ausência do objeto.
Sensibilização
É quando o sistema nervoso responde estímulo fraco como se fosse um forte e nocivo.
Quando gerado um estímulo forte, o interneurônio facilitador fez que a resposta motora fosse ampliada e o animal emitisse uma tinta(utilizada para defesa contra predadores).
Ele pressentiu que o estímulo forte deve ser notado, pois causa uma lesão. Isso gera uma resposta plástica que os interneurônios excitatórios geram maior resposta que os inibitórios, fazendo que reaja com mais força e a quantidade de tinta aumente nos quadros de sensibilização.
Um estímulo que não produziria a emissão de tinta do animal, agora produz esse comportamento.
Condicionamento clássico
O condicionamento clássico é um processo vinculado ao fisiologista Ivan Pavlov(1849–1936) de grande importância para o entendimento da escolha dos nossos comportamentos.
Seguindo a mesma lógica da sensibilização, porém o condicionamento existe a diferença que não precisa ser o mesmo estímulo para gerar a mesma resposta.
Podemos pegar como exemplo o famoso teste de Pavlov, em que apresentava-se para um cão o sinal de uma campainha e em seguida um alimento. Após a reprodução desses estímulos, o animal salivava apenas com a provocação sonora e sem precisar do alimento.
A diferença do condicionamento clássico para a sensibilização, é que no condicionamento os estímulos são diferentes: o primeiro é inócuo e o segundo provoca a resposta. O sistema nervoso tem que fazer uma associação de um estímulo que não possui nenhuma ligação com o outro para gerar a resposta antecipatória. O animal associa o estímulo eficaz ao inócuo e passa a responder também quando ele é aplicado sozinho.
Capacidade de associação entre significados
O sistema emocional é responsável por reforçar a associação das áreas neurais estimuladas pelas experiências, as principais áreas são: amígdala, hipocampo e núcleo accumbens. Ou seja, a memória não se encontra no córtex, mas sim nesta estrutura que tem o papel de manter esses circuitos ativados.
Esse sistema é capaz de associar através das conexões com ele diferentes conexões neurais geradas pelas experiências. É por isso que o animal consegue associar a compainha com o alimento, pois as áreas no cérebro são distantes e não é trivial conectar elas. Aos poucos que isso é fortalecido, o caminho entre esses neurônios também é facilitado.
Construção das memórias através das experiências
Os sinais que vêm dos sentidos fazem conexões sinápticas e terminam nas células do hipocampo, que continuam fazendo conexões na mesma área.
O valor emocional que nosso cérebro dá a experiência é feito através da dopamina e serotonina. Esses neurotransmissores ativam um sistema modulatório de neuroplasticidade. Eles liberam substâncias transmissoras químicas e agem na fortificação da conexão sináptica. Através desta fortificação, não temos apenas um terminal no hipocampo, mas vários outros. Quando voltarmos a lembrar desta experiência, teremos mais conexões e referências. Agora esta memória está impressa permanentemente no nosso cérebro pelo valor emocional que foi agregado a ela. Desta forma, as emoções alteram permanentemente os genes das células nervosas que foram as incentivadoras a criar as novas conexões sinápticas.
Essas conexões sinápticas sob circunstâncias apropriadas podem persistir durante toda a nossa existência.
Como acontece do ponto de vista físico?
Através de um fenômeno elétrico que ocorre no cérebro chamado de Potencialização de Longa Duração(LTP) e foi descoberto por Timothy Bliss e Terje Lomo na região do hipocampo, onde é o local que isso mais acontece.
Quando acontece um estímulo que ativa o hipocampo, a LTP pode demorar minutos ou horas e ativam os colaterais de Schaffer são axônios colaterais emitidos pelas células piramidais CA3 do hipocampo que ficam na região da CA3 e CA1 da imagem. Quanto mais tempo foram ativados, acontece maior atividade e duração entre os neurônios. E assim o cérebro consegue correlacionar os estímulos que estão ocorrendo em áreas distintas fazendo com que essas conexões fiquem fortalecidas durante o tempo que ocorre o estímulo. A partir de um momento que esse estímulo for reproduzido diversas vezes durante um certo tempo, as conexões entre o córtex que foram fortalecidas pelo hipocampo desenvolvem suas próprias conexões, passando a ficar independente dele.
Esse fenômeno quanto maior o tempo que ele é reproduzido, maior é o número de receptores na pós sinapse.
As reações químicas que ocorrem durante a LTD não são nada simplórias, mas para resumidamente elas ocorrem pela liberação de Glutamato pelos neurônios pré-sinápticos dentro do hipocampo na região da CA1. O Glutamato age sobre dois receptores pós-sinápticos do tipo AMPA(aumenta a saída de potássio) e NMDA(aumenta a entrada de cálcio), ambos acabam se potencializando e aumentam a atividade neuronal. Existe um outro elemento importante neste fenômeno que é a ação de neurotransmissores gasosos que podem ser óxido nítrico(NO) e os receptores canabinóides do tipo CB1 ou CB2, que geram um sinal retrógrado e aumentam a liberação de neurotransmissores gerando mais atividade elétrica.
Esquecer é tão importante quanto lembrar
Um fenômeno tão importante quanto a LTD é a Depressão de Longo Prazo(LTP), que do ponto de vista teórico é bem semelhante à LTD, por ser também um mecanismo elétrico de longa duração que altera a dinâmica da plasticidade sináptica. Mas diferente da LTD que aumenta a atividade elétrica dos circuitos, a LTP é responsável por diminuir. O motivo de um mecanismo de memória diminuir a atividade elétrica de alguns circuitos, é causado toda vez que o córtex identifica um repertório comportamental que leva a uma decisão inadequada ou perda funcional, desta forma enfraquecendo o circuito que gerou o resultado errado. Irei abordar o fenômeno da LTP em um próximo texto que envolve o cerebelo.
Conhecer o ser humano é entender suas histórias, suas experiências, sentimentos e valores agregados a esses fatores. Os processos biológicos do cérebro que constroem a memória são importantes, pois moldam a visão interna e externa que as pessoas possuem e tornam-se únicas.
Este artigo está repleto de generalizações simplificadas, sendo um recorte do assunto. Se você quer saber de fato sobre, terá que ler mais.
Referências
- Professora Carla Tieppo
- Em busca da memória
- Em busca da memória — Eric Kandel
- Crítica da razão pura
- Epistemologia de Immanuel Kant
- UX and Psychology III — Pavlov your user
- Pavlov’s dogs and UX
- Você está querendo adestrar seu usuário?
- UX as a doctrine. How nineteenth-century Behaviourism still influences UX researchers and designers today.
- Desenvolvimento do comportamento
- Bases neurais da memória e da aprendizagem
- A estética do sublime em Kant: alguns apontamentos
- UX and the Line of Beauty in Networking