É só

Alice e as flores.

De regresso ao blog, ao Neurodivas. Como avançou o campo do autismo em Portugal, no que diz respeito à auto-advocacia! Há muitas vozes e mãos autistas no espaço público, tantas que vou querer conhecer. Tantas oportunidades maravilhosas de escrever para a Revista Osso. Tantas fantasias a escrever. Mas escrever sobre as delícias do real, e as delícias e sofrimentos das fantasias, ao tornarem-se reais. Vou querer, até ao fim do ano, saber como me poderei imaginar na investigação do autismo em Portugal. Imagino a partir das experiências de vida, do que é estar vivo, experimentar o mundo. É prazeroso? É doloroso? Há uma experiência de vida positiva no autismo, capaz de ser autónoma — de viver por si? Ou é um sofrimento sem fim a existência só, e social?

Provavelmente, vou começar com o sofrimento. Com as situações que dificultam a convivência. Com o bullying real e existencial, com o asco de as outras pessoas fazerem coisas inaceitáveis, muito feias. Com as dificuldades de auto-cuidado, comportamentos preventivos de saúde, lavar os dentes.

Mas também há o maravilhoso quotidiano que nos delira, com a magia da Maria Júlia. O cozinhar. O sentir o amor de orquestrar uma fantasia partilhada, a de eu a instruir e ela incorporar, no seu próprio estilo, a tarefa de cortar os vegetais, e fazer uma omolete de ovos de pata no dia do pai. O amor a fazer coisas juntas, a saltear os legumes enquanto ela faz outra coisa. O nosso amor não é muito do fazer, é do coexistir. Mas misturar as duas coisas produz uma contaminação bem-vinda, onde há bens além dos produtos finais. O bem de o fazer, e de o fazer bem, foi para o banco dos valores internos, dos bens internos. Estes bens são-nos roubados sempre que as transações de objetos não trazem bens sociais capazes de ser incorporados, que facilitem a adoção da tarefa, o prazer de cortar legumes, o prazer de cozinhar. Sem isso, a tarefa nunca será incorporada como um ganho de capacidade, e apenas como um trabalho, um esforço que se faz para outros que não nos devolvem nada, outros para quem o nosso trabalho é indistinto das máquinas ou escravos.

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