A mãe esquece-se das coisas

Sapatilhas. Onde estão as sapatilhas? Não estão na sala. Não estão no carro. Não sei onde estão. Com a miúda bem-disposta, preparada, a horas, sem estar atrasada. A ter estudado na véspera para o exame, pela primeira vez. A ter-me acordado ela, a pôr os alarmes. Com pequeno-almoço tomado, a dizer que não vai comer outro pão para chegar a horas. Dia de exame. Sapatilhas. Onde estão as sapatilhas? Na piscina. Vê-se o horário da piscina. Abre às oito, pode ser que dê. Ela bem-disposta, lá vamos. Espera super bem comportada no carro. Não estão lá as sapatilhas. Pânico. A funcionária super envolvida, liga à pessoa que reviu o balneário antes do feriado. Nada. A única alternativa é levar uns chinelos, porque não aceita experimentar outros sapatos. Claro que isso seria possível, mas não assim, não em cima da hora. Mudanças de roupa são demasiado grandes, especialmente de sapatos. É um desafio encontrar sapatos confortáveis. Uma vez encontrado um par é para sempre. Não há outro par. Nunca foi preciso. Nunca me esqueci das sapatilhas. Tinha dormido quatro horas na noite anterior a esquecer-me das sapatilhas. “Eu não quero que me vejam os pés”, diz-me, mas tem de ir para a escola porque vai ter exame. E vai. E mesmo assim chega apenas 15 min atrasada, mas eu disse-lhe que chegou a horas, pois ela fez tudo bem. Eu fiz mal. É o que a minha cabeça me está a dizer desde o início. Esqueceste-te das sapatilhas. A mãe esquece-se das coisas. Sei porquê. ADHD, ADHD, ADHD. PHDA. PHDA. PHDA. Onde estão as sapatilhas, onde estão os óculos. É que arrumar as coisas, ordená-las, é um custo insuportável. Prefiro mil vezes fazer um vestido do que arrumar um vestido. Coisas. Coisas. Montanhas de coisas. Odeio coisas. Há tarefas que são simplesmente impossíveis para pessoas com défice de atenção. Tarefas de baixa dopamina são simplesmente insuportáveis. O cérebro não tem motivação, energia, para se lembrar daquilo. É um ato de uma violência insuportável, insuportável, insuportável, ter de obrigar o cérebro a lembrar-se pôr as coisas no lugar. Alguma tem de ficar de fora, alguma tem de ficar esquecida em algum momento. Nunca me tinha esquecido das sapatilhas. Ah! Só podem estar no parque. Vou ao parque. Portas fechadas. Dou a volta ao parque. Entro. Vejo as sapatilhas. Abre às 11. A minha filha vai ficar sem as sapatilhas no exame. Imagino-a desregulada, ou triste, sem as suas sapatilhas. Imagino-me a mover mundos e fundos, ir comprar outras a 40 km, ligar para a organização que gere o café do parque, e eis que, a caminho do carro, chegam as pessoas que me podem abrir a porta. Que guardaram as sapatilhas, que nem sequer estão molhadas, estão secas, dizem eles que pensaram quem deixaria no parque assim as sapatilhas. Quem gosta de andar descalça. E iria sem sapatilhas para casa? Sim, porque ia à piscina de seguida. Escrever este texto não me custa nada, nem um pingo de sofrimento. Mas esquecer-me das sapatilhas custa-me o Evereste de sofrimento. O que nos dá gozo e sofrimento não é igual para todos. As pessoas ficam surpreendidas, como é possível fazeres as coisas que fazes e tropeçares em coisas tão simples para as pessoas comuns? Sapatilhas. Umas simples sapatilhas. Com a colaboração das pessoas da Lousã super-gentis, super compreensivas e compassivas foi-me possível entregar as sapatilhas na escola, para a minha filha as calçar, às 09:07. Antes do exame, ainda no primeiro tempo. Ela está bem, disse-me a funcionária da escola. Estava calma, na sala. A mãe é que não. Às tantas, lá vou ter de tomar medicação pela primeira vez da vida. Sapatilhas. Por causa de umas sapatilhas.

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