As feridas

Vai doer, vai devagarinho. Caminha como alguém que tem feridas nos pés, ou, se eu quiser outra imagem, tem uma cauda de sereia em terra. Estou fora do meu ambiente. Desempenhar um papel estranho, logo, causador de ansiedade, sem o prazer de deixar o papel vir do corpo, ou do corpo tomar o papel. No fundo, desejar uma fusão, entre o corpo e o papel, a função, o trabalho, que há que fazer. É a esta fusão que chamo de incorporação — tornar algo nosso, apropriarmo-nos de um recurso, uma imagem, uma ferramenta, uma fantasia. Incorporar o andar das atrizes de westerns italianos que adoro, ver-me a desempenhar aquele papel que se colou ao corpo, que agora é meu, que de alguma maneira me faz dali, de um lugar onde se fala à Porto, onde não se comem caracóis, onde a semiperiferia se integra, onde ser mulher faz parte de mim, onde ser esposa faz parte de mim, onde ser mãe faz parte de mim, e não me esgoto aqui, há uma totipotencialidade anterior, que pode, na verdade, fazer-me ser tudo o que eu quiser ser. Se eu quiser ser.

Uma vez incorporado, o papel passa a ser natural — passa a ser a nossa forma natural de expressão, o nosso estar em casa, em descanso, sem ter de fazer masking.

O masking acontece sempre que pretendemos desempenhar um papel para o qual não existe ainda figurino interno disponível. Nenhuns dos figurinos disponíveis apresentados são aceitáveis — são entendidos como opções, não como imposições. O papel de mãe pode (ou não) ser aceite, mas que tipo de mãe? A construção do tipo de mãe vai-se juntar com a mãe que age — a mãe não pode agir sem um tipo-imagem, senão fica cega, ou sem forma (ou não vê a forma ou não tem forma). Mas, felizmente para mim, o papel de mãe veio com imensa naturalidade — tudo me dava as certezas, que talvez nunca tenha tido, para me dedicar a 100% de uma só vez. Esses 100% não são o prazer de completar a tarefa, mas sim o prazer de viver, de coabitar, de viver junto, numa única ecologia de seres, que inclui, no mesmo espaço, além de três humanos, as gatas.

Desempenhar um papel “a vulso” como organizadora, o meu némesis, em que determino alguma coisa sobre outros seres que terá de acontecer num dado tempo e lugar, com burocracias associadas, uma lista de tarefas que têm de ser realizadas mecanicamente, sem entusiasmo, enfim, o que matou Kafka.

Busco, quando quero, imaginar-me a partir dos papéis que adoro para criar uma imagem. Fantasio. Rio-me, e a ansiedade do dever torna-se em prazer. Eros flui. Não dá é para fazer de outra maneira, de fingir, ser um papel qualquer.

Mas há mágoas. Há angústias. Há feridas. São invisíveis. São o que me torna num morcego surdo, à procura de ecolocação. Mas eu sei que é por ali. Não posso é ignorar as feridas, esquecer-me das feridas. Elas obrigam-me a tomar nota, a cuidar delas, a cuidar de mim. Vou caminhar com feridas. Vai doer. Tenho de as curar no caminho. Ir devagar.

Shiori Matsumoto

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