As figuras de Temple Grandin

A dívida que o movimento da neurodiversidade tem com a Temple Grandin é proporcional ao seu nome: grande. É difícil uma autista ser mais controversa. E afloro aqui o início dos porquês.

O auto-conhecimento que a Temple tem da sua cognição e da dos outros seres é impar. Digamos que é suficiente para acabar de vez com o estereótipo de que as pessoas autistas têm fraca teoria da mente. Devia ser suficiente, quando ela narra o quão idiotas lhes pareciam as pessoas que insistiam que o gado tinha de descer plataformas metálicas inclinadas nos quais não sentiam segurança para pôr as patas. As imagens que ela produz em nós são chocantes. Ela é boa não só a pensar com imagens, mas a produzir imagens nas outras pessoas, o que a torna uma excelente comunicadora — ela comunica-nos figuras, planta-as nas nossas mentes.

Plantou na minha mente a figura duma mulher que berra para homens que insistem em conduzir animais de grande porte através de estruturas absurdamente desenhadas, e que quando os animais emperram e não querem avançar, em vez de perceberem o porquê, forçam-nos, com descargas, com violência, indiferentes ao sofrimento resultante, às patas partidas, aos animais afogados, enfim, a todo um desastre capitalista que impera e que persiste à custa duma enorme dessensibilização. Diz ela: vejo agora que eles não eram idiotas. Vejo agora que eles não conseguiam ver — não conseguiam visualizar as falhas no seu desenho. É aqui que ela entra com as suas super-habilidades: a capacidade de visualizar na sua mente as estruturas antes de elas serem construídas. Consegue fazê-lo porque, além de pensar em figuras, consegue combiná-las: como ela mesma diz, consegue combinar o telhado duma casa com outra casa. Consegue inovar, construir tecnologias, com as suas figuras, como se fossem Legos.

É a este ponto que se agarra no seu livro: à diversidade de formas de cognição. Há os que pensam em imagens, há os que pensam em padrões, associações, e estas pessoas, que podem ter estilos cognitivos combinados, vão ter, naturalmente, super-habilidades e uma predisposição para desempenharem com mestria certas artes: design gráfico, treino de animais, programação de computadores, música, engenharia, tradução linguística, etc, etc, etc.

O que Temple Grandin propõe são pedagogias adequadas aos estilos de cognição que podem dar excelentes contributos para estas áreas, de forma a não haver um gigantesco desperdício de inteligências: nas suas palavras, precisamos de todas as mentes. O facto de ter singrado num mundo totalmente adverso a uma mulher autista — um mundo de cowboys, onde uma super-empática com vacas acaba a trabalhar no design de matadouros, torna-a particularmente optimista para que consigamos resolver problemas complexos reconfigurando-os, ou melhor, re-figurando-os, para que, em vez de oposição, força e violência, possa haver, vamos chamar-lhe, uma cooperação entre seres distintos.

É assim, digo eu, que as vacas podem cooperar no matadouro com os seus “matantes”. É assim que a matança decorre com menos violência, sofrimento e incidentes, é assim que os animais têm melhor bem-estar. Não temos de deixar de comer carne, nem temos de deixar de matar animais, o Texas não tem de deixar de ser Texas, a masculinidade tóxica não tem de deixar de ser tóxica. Tudo pode mudar com a tecnologia — com o design de sistemas que distribuem o valor, neste caso, acomodando o mundo a ela — conseguindo encontrar um lugar neste mundo onde ela traz valor, onde se integra, numa figura única, respeitada pelo capitalismo — diz-nos que 1/3 das instalações de gado nos Estados Unidos da América e no mundo são desenhados por ela — e onde produz uma série de bens — menos sofrimento animal e humano, pois certamente que os humanos nestes matadouros não estariam felizes, imagino eu, ao “torturarem” os animais. Temple Grandin trouxe bem ao mundo, encontrou o seu lugar no mundo.

O seu bem não se fica por aqui. Como é uma tecnóloga, é capaz de imaginar e recompor mundos na sua cabeça, como se fosse um 3-D a girar. E aplica o seu bem e o seu método aos autistas e a ela mesma, ao ser capaz de desenhar uma maquina de abraços para acalmar a ansiedade. Temple coloca-se no matadouro, ela percorre os caminhos do gado, ela não fica a olhar para eles — ela coloca-se na sua posição para ver o mundo da perspetiva do gado. Ao perceber a ansiedade deles, percebe também a dela própria — aplica a lente a si mesma e figura-se. Consegue ver-se.

Temple Grandin dá depois o seu contributo para outros autistas, num mundo onde estes enfrentam o mesmo problema do gado: onde é que emperram, em que lugares não avançam, onde não querem entrar, onde “se passam”: têm meldowns. Mais uma vez, a solução para estes emperranços é a força — aplicada por desenho no método de Lovvas e do ABA.

Mas mais uma vez, Temple Grandin não vai contra o Lovaas, tal como nunca foi contra nada a sua vida. Temple foi sempre a favor de encontrar portas abertas. Portas e janelas são as suas figuras de progressão. Há salas, há portas e janelas, como se fosse um jogo de computador, em que o movimento e motivação é continuar de sala em sala, conquistando e ultrapassando dificuldades. Consigo relacionar-me com ela, e provavelmente conseguirão muitas das pessoas que encontram um enorme prazer e satisfação na superação delas próprias, de conseguirmos crescer, abrir novas portas.

Não surpreendentemente, há autistas que recusam serem conduzidos como gado num matadouro. Compreensível. Eu também não gostaria. Consigo imaginar, sem ter feito uma revisão da literatura, que a Temple possa ter encontrado opositores no mundo do bem-estar animal vegan, e em pessoas que pensem que não é só sobre abrir portas e seguir o caminho do matadouro - é preciso de sair do matadouro. Mas talvez Temple não veja onde está a porta, e sinceramente, eu também não.

O que é incrível é que os argumentos de Temple a fim de desenvolverem abordagens pedagógicas que permitam o florescimento das capacidades dos autistas para serem aproveitadas pelo capitalismo, em muitos lugares, não esta a ser posto em prática. No que diz respeito ao autismo, devemos estar nos 2/3 dos matadouros que não foram desenhados por ela. Todos os dias, pessoas autistas são forçadas a entrar em portas que não querem e a terem meltdowns em salas de aula, entrevistas de emprego e nas suas vidas, e todos os dias a resposta continua a ser a de Lovaas: electrochoques e correção de comportamento.

Eu felizmente tenho a experiência de percorrer o caminho do matadouro em sistemas que foram desenhados por ela: que acomodam e têm em consideração os receios da minha filha, que partilha muitas características em comum com as que ela descreve, os medos de sons, de sombras, de luzes. Mas aqui há diferentes abordagens também. Há as que acomodam o gado a ser conduzido e retiram os papeis brilhantes que causam medo e paralisia, e há os que querem dessensibilizar os medos. Podemos sempre pensar que num matadouro, todo o gado é conduzido pelas instalações, mais ou menos voluntariamente, mais ou menos patas deixadas pelo caminho. Dessensibilizar os medos pode ser deixar uma pata pelo caminho — atentar contra a nossa percepção, logo, contra o nosso corpo.

Temple Grandin é a mestre da acomodação e deve ser respeitada por isso. É também a mestre das pedagogias — para mim, o melhor contributo que nos podia ter deixado. Infelizmente, este caminho tem de ser ainda desenhado e percorrido, pois continuam a querer corrigir-nos em vez de terem em conta a matéria da qual somos feitas — como ela muito bem diz, não dá para ensinar álgebra a uma pensadora visual — não há nada para visualizar, e para uma pensadora visual, se não há figuras, é como se fosse cega — não há imagens, não há sentido, não há sentido, não há cognição. É como ouvir falar blablablablablablablablabla. Mas há geometria e trigonometria. Há outros sistemas que mentes especializadas podem percorrer. O melhor que a teoria comportamental pode ter é ensinar-nos a reproduzir com exactidão o blablabla certo para descanso de todos — uma vaca a comportar-se como uma senhora, sendo que continua a ser uma vaca, e nunca uma senhora. Terá sempre de ser uma vaca-senhora que aprendeu a sentar-se à mesa, uma vaca amestrada, incluída na mesa em vez de ser a refeição. Para muitos, isto é inclusão.

Há que ir além do legado da Temple Grandin, que está longe de estar esgotado. Há que continuar onde ela parou: 1) no campo das forças que bloqueiam as pedagogias para mentes especializadas; 2) nas acomodações que permitem acalmar a ansiedade e outros desconfortos sensoriais e cognitivos; 3) na construção duma verdadeira autonomia — a capacidade de sair do matadouro para ser um ser completo, capaz de olhar para si mesmo e para os outros estabelecendo comunhão.

Não descurando os dois primeiros desafios, que são gigantes, vou deixar as ultimas linhas para o último, que é dos mais desafiantes. Estamos num mundo onde operam forças violentas para nos manter no caminho do matadouro. Podemos diminuir a violência do caminho, o que se agradece, mas para sermos pessoas temos de elevar o trabalho empático a outro nível.

Temple Grandin é uma das grandes empáticas, como muito bem afirma a Karla McLaren (https://karlamclaren.com/empaths-on-the-autism-spectrum-part-2). O trabalho que fez de se colocar nos corpos e mentes das outras pessoas para compreender como pensam e como ela mesma pensa, é fundamental para que as pessoas autistas possam ser nutridas de afectos, de pertença, a uma verdadeira casa, para a qual possam contribuir. Precisamos de muitas figuras para fazer este trabalho bem. Precisamos da Temple e de todas as outras mentes. Precisamos de figuras que consigamos agarrar para nos movermos para o futuro e não ficarmos presas atrás desta porta para sempre. Figuras que nos sirvam, figuras e estereótipos positivos, representações positivas de como as pessoas autistas podem ver-se a elas mesmas, não serem um ponto cego delas mesmas. Precisamos de perceber a relação entre os estilos cognitivos e afectivos — entre a cognição e a emoção. Precisamos de tudo para nos e nada contra nós: médicos, psicólogos, professores, educadores, têm de ser capaz, juntamente connosco, de desenvolver essas figuras, esses padrões, facilitar associações. Temos de conquistar a liberdade de deixar os nossos pensamentos fluir, em segurança e sem retorno, e ver o que é que acontece.

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