Chegar a termos: autistas e neurodiversas

Comer o mundo. Fonte: Maxpixel.

Em qualquer conversa ou discussão, é importante chegar a termos. Não é tanto fixar o que as coisas são, mas sim o que se entende por.

A palavra autista vem do grego autos que quer dizer ser. O sufixo ista pode ser usado como adepto. Como resultado, podíamos ter uma coisa parecida como adepto de si.

Aqui ficam alguns excertos do significado da palavra autista extraído de dicionários:

Autista — que sofre de autismo (https://dicionario.priberam.org/autista);

Autista — pessoa portadora de autismo, transtorno global do desenvolvimento, definido pela concentração excessiva em sentimentos e pensamentos próprios em detrimento do mundo exterior. (https://www.dicio.com.br/autista/)

Autista — Psicopatologia caracterizada pelo recolhimento e absorção do indivíduo em seu universo privilegiado de pensamentos, sentimentos e devaneios subjetivos, com o consequente alheamento do mundo exterior e a perda do contato com a realidade a seu redor. (http://michaelis.uol.com.br/busca?id=xYLN)

Autismo — no início do século XX, originalmente com referência a uma condição em que a fantasia domina sobre a realidade, entendido como um sintoma de esquizofrenia e outras desordens. (Definição de Oxford Languages).

Estes entendimentos do que é ser autista e o que é o autismo são aberrantes, ofensivos, e ableistas. São os entendimentos que resultam em frases do estilo “ela está no mundinho dela”.

E o que é este “mundinho dela”? O mundinho fantasioso, alheado da realidade. O mundo da Alice no País das Maravilhas.

Tendo estas referências de dicionário, vamos então começar o processo de chegar a termos.

Vamos começar por assumir que há formas diferentes de fazer sentido do mundo. Que os seres vivos, entendidos como seres que pensam e interpretam, vão ser diversos nas suas formas de cognição. Que vão receber e processar informação sensorial de forma distinta.

O autismo pode ser considerado como uma forma minoritária de processamento de informação sensorial. Traduzido por miúdos, como fazemos sentido da informação que nos chega dos sentidos. E no espectro do autismo, há sempre muita comida na mesa. Os nossos sentidos trazem-nos mais do que podemos processar. A condição natural do autista é ficar facilmente assoberbado pelo mundo. Tudo é muito.

Podemos dizer que, ao contrário das pessoas autistas se recolherem do mundo, as pessoas autistas recebem muito mundo duma só vez. E como se costuma dizer: “não se pode comer o mundo só de um trago”. Como é tanto, pode haver recolhimento, mecanismos de proteção.

Ser autista é estar mais ligado ao mundo, não menos. É ter mais abertura, maior porosidade. Logo, maior dispêndio de energia na integração sensorial de tudo o que chega, porque chega mais informação. “Você não é lenta, tem é mais para processar”, foi o que disse o meu instrutor de condução, que, com a sua longa experiência de décadas a ensinar pessoas, conseguiu perceber-me.

Ser autista é ter o desafio de fazer sentido do mundo a partir de si, nos seus termos. A partir de si é diferente de virado para si. Não perdemos contacto com a realidade, mas temos uma semiótica distinta — formas distintas de fazer sentido do mundo, fazer associações. Formas diferentes de brincar, de imaginar, de sonhar.

Ser autista é ter uma forma de cognição minoritária dentro dum espectro. Ser autista é ser uma neurominoria. E comunicar com alguém que pensa de maneira diferente da nossa traz sempre custos interpretativos adicionais, e é mais fácil desclassificar a outra pessoa do que querer entrar no seu mundo e entender os seus termos. Porque as maiorias impõem os termos dominantes, e definem-nos. As outras que se ajustem.

O sofrimento não é uma condição inerente a ser autista. O sofrimento resulta do desencontro de expectativas, de mal entendidos, de comportamentos que parecem sem sentido. Aviso já: é recíproco. Toda a estranheza que têm comigo, eu tenho convosco. Se tivesse de medir o autismo, como tantas pessoas gostam de fazer a ver quem é muito e quem é pouco, seria medir o grau dessa estranheza mútua, que ganha uma geometria. É a geometria que vejo ao chegar a uma aula de desporto e ver a minha filha encostada a um poste, sozinha, com ar aborrecido, enquanto todas as outras crianças da turma competem pela atenção do professor. Essa geometria podia ser desfeita tão rapidamente, se o jogo fosse outro. Essa geometria não pode ser atribuída a uma criança só. É urgente mudar os termos para mudar as regras do jogo, para um jogo que seja, pelo menos, mais participativo. E provavelmente, mais divertido.

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