Chuva

Hoje deleitei-me na praia sem culpa, com a minha filha. Ainda em ajustes da medicação para PHDA, pude desfrutar da doce sensação de me sentir mais segura e permanente no mundo, de forma a gozar das delícias terrenas — do sol, da areia, das brincadeiras tão simples como uma construção na areia, ou melhor ainda, não-construção, apenas sentir na pele, misturar-me com o ambiente, deixar-me tocar.

Abrir os olhos debaixo de água e ver aquela cor verde escura do rio, da qual até a cobra de água quis repousar na margem, limpa e límpida, onde me atrevi a ir ao fundo, a procurar o chão pedregoso, até sair para ser chamada para as minhas obrigações.

Mas eis que mais tarde, estas emoções desvaneceram e deram lugar à digestão de irritações, absurdos e injustiças humanas de um sistema burocrático que me obriga a ser resiliente. E ser resiliente não é misturar-me com o mundo humano, mas proteger-me dele, eliminar a toxicidade e raiva, querer deixar as emoções negativas.

O que me deleita é o que me tortura — sentir demais as coisas. E se me deixo tocar pelas boas, sou magoada pelas más, e nada posso fazer a não ser deixá-las fluir.

As emoções negativas produzem ecos e réplicas de dores conhecidas anteriormente. Mas agora vejo-as, e antes de as por em palavras, ponho-as em imagens.

A imagem primeiro, a sensação primordial. Sim, mais do que a palavra ou a imagem, é a memória do toque que surge, mas de um toque traduzido.

A figura que se impera é a chuva.

A chuva, que escorre, a chuva, que lava, a chuva, que molha, a chuva, que chora.

A chuva que chora liberta o choro.

A chuva, mais do que a raiva ou frustração ou incompreensão ou absurdo.

A chuva, mais do que o medo.

Chove, e as palavras aparecem.

Chove a injustiça, cai uma tromba de água.

Chovem os cenários sobre os quais não posso fazer nada, além de esperar que corra tudo bem, a calar medos com falsas seguranças, ou pelo menos, a não ter de pensar neles mais do que nas esperanças.

Chove e cai torrente, já é uma tromba de água, já há deslizamentos de terra, e já a bonança se avizinha.

Chove na música também que me acalma, e deixo ir.

Largo, deixo ir, todas essas sensações que, como uma marabunta, passam.

Deixo ir, deixo ir, com as teclas do piano deixo ir.

Deixo ir porque tenho mais do que fazer,

Tenho mais quem amar,

Tenho tarefas a concluir,

Deadlines a cumprir,

E para quê, pergunto-me sim para quê, chatear-me com o que não merece,

Posso agora chatear-me com uma pessoa que faz as vezes de formulário,

Sei lá eu como ela é nem a conheço ainda,

Sei lá eu, só sei que vai correr bem.

Não é grave.

Não dá para chover sempre.

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