Contacto direto

Conversamos, em casa, de uma situação que nos pode afetar tremendamente: a redução das oportunidades de teletrabalho. Há muitas forças que se parecem coligar para isso: os desejos de Musk competir com “a China” no que diz respeito a baixar os padrões de trabalho dos profissionais de IT, as burocracias da “igualdade radical” que dizem que as coisas têm de ser “iguais para todos”, e que se nem todos podem trabalhar a partir de casa, então por uma questão “moral” ninguém deve poder trabalhar. Criou-se o caldeirão perfeito de “teletrabalho não é trabalho” e “têm de amolar como os outros”. Mas eis que surge a ciência em resgate a esta ideia-preconceito, misturada com desejos pós-covid de “voltarmos a ser um só” e ter a diversão do “contacto directo”: o “contacto direto” leva a um melhor desempenho, por si só.

Lembrei-me do asco que senti quando vi o “contacto directo” em ação: um político a pôr a mão no ombro a outro, a expressar apoio. Essa expressão do toque como apoio, que mostra, para terceiros, “nós somos um”.

Uma vez visto, não há como desver: há imensas “literalizações” destas, ou seja, “olhar alguém nos olhos” é sinal de coragem, de estar a dizer a verdade, de ser íntegro, de encarar o outro, por exemplo.

Outro tipo de literalização é o “pé descalço” — ser sinónimo de pobreza e mesmo alvo de proibição!

De alguma maneira, a pobreza, a vergonha, a preguiça, a moralidade, a solidariedade, a comunhão, o dever, a coragem e a cobardia, têm de ter uma expressão não-verbal, uma imagem.

O problema é quando as pessoas deficientes “encarnam” estas estranhas literalizações: andam descalças, ou não penteiam o cabelo. O símbolo confunde-se com o icon para dar palco a uma série de absurdidades, como os anões terem baixa auto-estima por serem baixos, ou os autistas “desprezarem” os não-autistas por não lhes darem importância. Este incorporar da “preguiça” por não agir rapidamente, ou seja, o corpo é usado como uma “prova”, uma visualização de sentimentos aversivos, negativos e positivos. As pessoas autistas foram usadas como “prova”, a manifestação de estranhas teorias pseudocientíficas, sendo a minha mais recente favorita, a de que temos um “cérebro selvagem” por não nos deixarmos “domesticar” — o que, na verdade, não me soa assim tão mal, ser uma humana não domesticada. Não fosse eu saber o que faz o homem domesticado, que se acha civilizado, aos seus brutos.

Este tipo de hipóteses — a de que não olhar nos olhos é sinal de cobardia, por exemplo — e o significado político de um toque no ombro — construídas sobre o não-verbal dão, na verdade, origem a proto-ideias, nos termos de Ludwik Fleck, médico e epistemólogo brilhante. No seu livro “Génese e desenvolvimento de um facto científico”, explica-nos como a ideia de que a sífilis era uma doença do sangue conduziu a investigação até ao teste de sífilis baseado no sangue. A proto-ideia está errada, mas motiva investigação que se “vai corrigindo”.

Mas, infelizmente, a investigação sobre o autismo sem a participação de autistas perde um tempo absurdo para chegar a mais patologização, porque parte do princípio que “não olhar nos olhos” é patológico, um défice, a ser corrigido ou normalizado. Esta obrigação, mediante pena de vergonha social, de “denunciar” um não-verbal que vai ter interpretações muito negativas por parte das pessoas neurotípicas, obriga a um esforço cognitivo acrescido, o que faz com que a pessoa não se possa concentrar na mensagem que está a querer dizer ou passar. É como se nos atirassem, metaforicamente, “areia para os olhos”.

O teletrabalho permite a muitas pessoas, nunca a todas, claro, funcionar como uma gigantesca acomodação. E durante a pandemia, provou ser eficaz em diversas esferas profissionais.

E agora, porque querem “apertar a mão ao colega no escritório”, porque sentem a falta do “contacto directo” e do “contacto humano” que a tecnologia torna “frio”, constroem uma “pós nova normalidade” onde toda a gente deve ir ao escritório, indiferentes e desumanos a todas as pessoas para quem o escritório não é um prazer, mas uma tortura.

O toque pode ser bom ou pode ser mau. Em algumas escolas do UK vigorava a “no-touch policy” em que não se tocava nas crianças para evitar abusos. Outras escolas responderam com o “we do touch policy”, tocamos para abraçar, acalmar, mimar.

A burocracia, por mais que se esforce, nunca pode garantir “um toque bom”, capaz de traduzir efetivamente companheirismo, compaixão ou empatia. A burocracia a única coisa que pode fazer são soluções extremas e universais, aplicadas em todos os contextos para todas as pessoas ao mesmo tempo.

A única coisa boa da burocracia pode ser ter o poder de não tornar as coisas piores, limitando a materialização dos abusos que deixem “marca”, ou “prova”, da qual a linguagem e a escrita são também um corpo. Aí sim, veremos se a palavra é transformadora.

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