Diversidade, diferença e defeito

Nunca deixei de ser bióloga, e provavelmente, nunca deixarei. Enquanto bióloga, sempre fui fascinada pela diversidade. A biodiversidade devia ser, por excelência, o objeto de estudo da biologia — o estudo da vida nas suas infinitas variações.

No entanto, a biologia nunca soube muito bem como aproximar-se do seu objeto de estudo. Uma das formas que encontrou, e que conheço bem, é a da classificação.

A classificação encerra uma tensão inerente: por um lado, é um ato de ordenar o mundo por parte de alguém externo; por outro, é um ato de reconhecimento de uma diferença externamente observável, mas que se quer, para ser verdadeira, que corresponda a uma ordem interna, a uma experiência vivida de uma singularidade partilhada.

Por isso se diz em biologia, ou dizia, que a espécie é o nível de classificação mais natural de todos. Porque todas as outras caixas e níveis são ranks — hierarquias — reinos, ordens, famílias, classes… inventonas mais ou menos suportadas por afinidades biológicas que podem mudar a qualquer momento. As espécies também podem mudar a qualquer momento, e isso é bom. Mas o que a biologia deixou cair, ao contrário das ciências sociais, foi a hierarquia entre espécies.

Houve um tempo em que a ordem das coisas refletia a sua importância, e tinhamos espécies mais evoluídas e espécies mais atrasadas. O conhecimento da biologia, a teoria da evolução, acabaram com isto. É importante saber distinguir um peixe de uma amêijoa, mas o peixe não é mais importante nem mais evoluído que a amêijoa.

Este abandonar da hierarquia entre espécies na biodiversidade permite-nos olhar para antigos sistemas de classificação como os médicos olham hoje em dia para a teoria dos humores. Talvez por isso a biodiversidade tenha produzido esta nova metáfora de horizontalidade, por os biólogos terem abandonado esta hierarquia.

E o mundo não entrou em caos, e as espécies continuaram a existir, e a serem nomeadas. Eu própria tive o prazer de nomear algumas. E os nomes mudam mais rapidamente do que as espécies, que também mudam. Os nomes mudam com o nosso conhecimento das espécies.

No entanto, hoje o conceito de espécie está em risco. A espécie como um coletivo de seres está ameaçada, pois procuram-se indivíduos e não espécies, singularidades e não o fabrico de comunalidades.

Supostamente, a espécie é um conjunto de organismos que trocam informações entre si, informações constitutivas, que integram. Lambem-se, cospem-se, partilham vírus e transferências laterais e horizontais e verticais e diagnonais e sabe-se lá que mais, e passam isso aos descendentes como, nas palavras do Jorge Palma, “um cachimbo a rodar de mão em mão”.

Mas esta igualdade entre pares tem sempre como limite a diferença. E a diferença não são só as outras espécies, que literalmente vivem de forma diferente. As diferenças podem ser o ponto onde nós acabamos e outro começa — outro indivíduo, outro ser — e/ou a hierarquia — outro acima de nós, ou abaixo. Outro com quem nos comparamos, outro com quem nos relacionamos, e com quem construímos a nossa imagem, o nosso auto-retrato.

A biologia é farta de exemplos interessantíssimos de formas de vida parentadas por outras espécies distintas. De gansos que seguem humanos, de cucos no ninho, tantas, mas tantas formas de enganos que habitam.

As consequências da classificação e da identificação é que são distintas.

A classificação separa o que a identificação une. A classificação separa sempre que estabelece uma ordem e hierarquia, a partir de um ponto de vista externo. A identificação une, sempre que uma espécie ou indivíduo se identifica com outro, afiliando-se.

A diferença só é diversidade quando não é defeito, e para não ser defeito, tem de ser capaz de encontrar e criar o meio onde se sente melhor — o seu nicho, digamos.

A diferença só é diversidade quando não há abaixo e acima, quando não há ordem através da classificação hierárquica.

Quem diz diversidade diz biodiversidade, diz neurodiversidade.

--

--