Estou a ouvir
A visão é a metáfora por excelência contemplativa do mundo. Estou a ver.
Ver, à distância, retirado a ver, a cidade, o campo, a minha gata na janela. Ver, segura, sem ser afetada.
Claro que não consigo ver sem ser afetada, por isso tenho de desligar a televisão.
Estou a ouvir Beethoven a tocar à lua, com uma bela imagem.
Mas estou a ouvir o Beethoven, quando supostamente nem ele se ouvia.
Ouvir é muitas vezes interpretado como um ato passivo.
Como se o ato de receber informação fosse um automatismo.
Falar é a voz ativa, a expressão máxima; ouvir uma subordinação à voz emitida, que dá ordens.
No entanto, a passividade dá lugar à perplexidade quando o outro não obedece aos nossos comandos.
Como não ouve? É surdo? É autista?
Como pode o outro ser indiferente à minha voz, tão soberana e sublime?
Como se a voz fosse tudo.
A voz não é nada sem um ouvido.
E ninguém é obrigado a ouvir.
Mas quando se ouve,
Pode haver não submissão, mas comunhão,
Apenas se o outro conceder que ouvir não é um ato automático,
Apenas se o outro conceder o trabalho de ouvir,
O trabalho que é uma disposição, uma receptividade,
Que não é bem opcional, nem intencional,
Que nasce de um interesse de ouvir.