Leitura de Sam Mullins

Sam Mullins (2015). Autism a make believe world. Great Britain, Amazon.

Uma coisa que aprendi com as feministas foi a fazer leituras difractivas — aprender a ler um livro a partir doutro ponto de vista. É assim que podemos identificar a emergência de diferenças, e também, acrescento, o que gostaríamos que fosse diferente.

Sam Mullins narra a sua autobiografia. Foi diagnosticado aos 19 anos. E até lá, a vida não correu bem. Basicamente conta que não gostava de ser diferente. Queria ser como os outros rapazes mas por mais que se esforçasse não conseguia sê-lo, e entrou em depressão. Percebia a diferença como ser menos. Conta-nos o Sam:

“Enquanto jovem, eu conseguia relacionar-me com adultos mais velhos, mas no que dizia respeito a relacionar-me com as outras crianças da minha idade na preparatória e liceu eu não conseguia compreender como sociabilizar com elas e formas relações. Elas dificultavam-me relacionar com elas mas não era culpa delas. Não era culpa de ninguém. O que me causava dificuldades resultava do que é chamado Síndrome de Asperger” (tradução própria).

Resultado: depressão. Pudera. A percepção duma diferença que inferioriza, que nos aliena do mundo. Como podia ser diferente o desfecho?

Começo por dizer que não acho normal que se espere que todas as crianças prefiram outras crianças a adultos. Porquê que não hão-de preferir adultos? Porque não hão-de desenvolver as suas habilidades com adultos, quando em muitos casos, podem sentir mais afinidade com tópicos de crescidos? Porquê que as crianças hão-de ser forçadas a relacionar-se com outras crianças? Durante muito tempo, eu preferi amigas mais velhas. Algum alívio nesta pressão de sociabilização parece-me bem vindo.

Mas não temos de parar por aqui. Temos de perceber que, para muitas crianças no espectro, por características que vamos desvelando aqui no Neurodivas aos poucos, a sociabilização nos termos das outras crianças é alienígena. Como dizia a Temple Grandin, é como ser “um antropólogo em Marte”. Logo, coisas que para outras crianças podem ser inatas, para crianças autistas podem ter de ser aprendidas. A aprendizagem social pode ser entendida como uma cortesia. Um amigo meu, agricultor, dizia: “quando vou à cidade, eu tiro os calos das mãos e visto-me como eles, é uma cortesia para eles”. Pode ser entendido como uma cortesia, como aprender a falar uma segunda língua. Como as pessoas que aprendem a focar um ponto entre as sobrancelhas para simular o contacto ocular, por cortesia. Mas a cortesia tem limites. E a cortesia, tal como as segundas línguas, só funcionam enquanto não são a primeira língua. Não é preciso muito para se saber o horror que é ter a nossa língua materna extinta. Sermos impedidas de nos expressar de formas que consideramos naturais. Chama-se colonização, e nomes ainda mais feios.

A cortesia funciona quando há respeito. Quando se sabe que a segunda língua da outra pessoa não é a primeira. E as pessoas autistas precisam de respeito. E precisam de ganhar respeito por si mesmas. Doutra forma, vão sempre ser acusadas de que não falam a segunda língua como se fossem nativas. Alerta spoiler: não são.

Continua o Sam Mullins:

“Quando eu fui diagnosticado com autismo eu não sabia o que era ser autista (…) O Síndrome de Asperger era um mistério para mim e eu não tinha ideia do que era. Não é surpreendente que uma das primeiras coisas que fiz ao ser diagnosticado foi ler o livro (…). O livro (…) basicamente explicou-me a minha vida inteira” (tradução própria)

Penso que há aqui um processo que deve ser tornado explícito. A forma como o autismo é definido, enquanto categoria nosológica, que está em constante evolução, é sempre uma roupa que alguém costurou para nós. A forma como a vestimos, como habitamos a nossa pele, é só nossa. Ninguém nos pode explicar completamente como somos. O auto-diagnóstico, ou qualquer diagnóstico, só tem valor se nos revemos nele. Nós é que validamos o diagnóstico que outros fazem. Só nós temos esse poder. O caminho da aceitação é nosso — o que vamos fazer com o conhecimento que vai sendo adquirido. O caminho da auto-valorização e da auto-estima.

Sam Mullins fala-nos dos principais mecanismos para lidar com o autismo — a diferença percebida entre ele e as outras pessoas: a imaginação, e a música.

A imaginação será tratada detalhadamente noutras publicações. A imaginação nas crianças autistas é dos temas mais mal-tratados pela ciência, que insistem em reduzir as suas brincadeiras a atos pouco imaginativos, e quando a imaginação surge, é vista como errada — porque não corresponde ao “típico” jogo simbólico das crianças “neurotípicas”. Vão poder ter amigos imaginários, ou mudar de nome, ou fantasiar heterónimos. Foram estes atributos que levaram muitas crianças a serem diagnosticadas como tendo esquizofrenia infantil, e a serem medicadas, na infância, com anti-psicóticos. Foi também a incompreensão destas formas de brincar que levaram à necessidade de correção, e a reforçar ainda mais a alienação. Conta-nos o Sam sobre o seu mundo de imaginação:

“As outras pessoas pensavam que eu estava a contar mentiras porque lhes tentava explicar o meu mundo de faz de conta. As outras não compreendiam porquê que eu estava a inventar coisas que não eram verdade mas o meu mundo de faz de conta era muito real para mim e ajudava-me a lidar com o autismo. O mundo de faz-de-conta foi a única razão pela qual eu consegui sobreviver à preparatória e liceu e estou certo que eu teria desistido da escola se não fosse pelo meu mundo de faz de conta e pela música” (tradução própria)

Tantas coisas que podiam ser diferentes. Por um lado, entrar no mundo de faz de conta. Porque não? É um veículo de comunicação. A coisa boa dos mundos de imaginação é que, quando deixam de ser precisos, desaparecem. Como o Pantoufle no filme Chocolate. Forçar mundos de imaginação a desaparecer cedo de mais, ainda por cima sem dar nada em troca — a realidade é muito inferior ao mundo de imaginação — é só violência.

Por outro lado, porque não abrir a possibilidade a ter amigos reais, verdadeiros? Deixar a possibilidade em aberto e facilitar a sociabilização. E às vezes, o facilitador pode não ser humano. Falo por exemplo de cães. Cães para apoio emocional que podem facilitar a aproximação de outras crianças e proporcionar interações, cães que vão ser amigos das crianças em caso de solidão. Cães que vão proteger a criança. Porquê que as crianças autistas não podem ser vistas como “fixes”, porque têm algumas coisas que as tornam únicas, e podem levar cães para a escola? Afinal, todas as figuras de filmes infantis são personagens não conformes, que lutam contra a discriminação.

Por último, Sam fala-nos da importância da música para ele. O fascínio pelo piano ajudava-o a sentir-se conectado com o mundo e sentia que era bom nalguma coisa. Ser bom nalguma coisa fazia-o sentir-se completo. Diz-nos:

“eu só queria ser bom nalguma coisa para que os meus pais que amassem e se sentissem orgulhosos de mim” (tradução da autora)

Ser uma criança e sentir que precisa de fazer algo para que os pais se orgulhem dela é uma violência. O amor tem de ser incondicional. Mas infelizmente, sabemos bem que o amor dos pais os pode levar a aumentar a pressão para que as crianças autistas se conformem e se esforcem por ser como todas as outras. Porque querem que tenham sucesso. Porque não querem que sejam falhadas na vida. Porque têm de aprender, desde tenra idade, a cumprir as expectativas que toda a sociedade tem para elas, e que as vai fazer sentir que vão falhar essas expectativas, vezes e vezes sem conta.

A música, para as crianças que têm este interesse, pode proporcionar e facilitar oportunidades de sociabilização. Mas para tal, é necessário que o ensino da música seja inclusivo. Não se trata de falhar no ensino da música, nos seus mais elevados padrões de qualidade. Trata-se de trabalhar pedagogias mais adequadas à forma de aprender das crianças. E isto pode ser um desafio. Mas são os desafios que valem a pena.

É muito importante as pessoas autistas partilharem as suas histórias. É muito importante pensar como é que essas histórias podem ter desfechos diferentes. Finais mais felizes que nos orientem enquanto sociedade, enquanto profissionais, enquanto investigadoras, enquanto pais, mães, amigos e amigas. A alternativa é a depressão, a alienação, termos o mundo roubado uma e outra e outra vez, a culpar a biologia pelo que a sociedade faz. Não há comprimidos mágicos.

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