O diagnóstico da vergonha

Hoje vi dois homens. Estavam mais pessoas na tasca, claro está, de manhã, mas as restantes foram invisíveis. Vi dois, porque os “conheço”. Capturam a minha atenção há vários anos. Acompanho-os à distância, cumprimento-os, e eles saúdam-me. Hoje reparei nas roupas deles, porque estão diferentes. Um é jovem, e estava vestido como um beto de Coimbra. Poderia estar a estudar na Ivy League. As roupas oferecem-lhe uma ficção muito credível, que, imagino, seja acompanhada por alguns scripts, algumas frases-chave capazes de “enganar”, à primeira vista, alguém que não o conheça nem conheça os betos de Coimbra e apenas os imagine. Enganar quem não saiba onde cresceu, como cresceu, enganar quem não conheça as suas dificuldades, a sua história de vida. A roupa dá-lhe um passaporte para poder, imagino, estar com pessoas fora do círculo onde nasceu e, talvez, impressionar os do seu círculo, parecendo maior do que é. Nada na sua vida o envergonha, ou pelo menos, não devia envergonhar. Conheço-o, é um sobrevivente. Mas digamos que a roupa esconde que é um sobrevivente. A roupa é a roupa de alguém que não teve de sobreviver a nada. A roupa é uma atitude perante a vida, uma atitude de alguém que não quer crescer a ser como os restantes homens da tasca, a beber vinho e bagaço pela manhã, a trabalhar à jorna, à espera que os chamem, lá dentro ou lá fora, encostados. Recordo, numa viagem que fiz ao Vietnam, que havia um café que pingava lentamente, que lhe chamavam o café da espera. Era o café que bebiam enquanto esperavam ser chamados para trabalhar.

O segundo homem é um homem da jorna, mas hoje, também ele tem uma roupa nova. Uma farda do ICNF. Guarda um sonoro silêncio enquanto outro lhe pergunta como se pode fazer para pôr abelhas na serra. O silêncio fala bem alto, pois claro que ele não sabe nada sobre o assunto. Ele está a fazer trabalhos florestais. Como vai saber ele das autorizações e da complexa política de quem pode ou não pôr abelhas na serra? O silêncio dele fala. O outro homem, empregador local dos que trabalham à jorna, fala da igualdade de oportunidades e das histórias das pessoas que lá querem pôr abelhas. Calado, o homem da farda também sai.

Ver os dois homens despidos, o jovem que vi crescer, e este jornaleiro, faz-me apreciar a forma como vestem estes uniformes. É como se ficassem aumentados de tamanho, como as minhas gatas quando eriçam o pêlo para parecerem maiores do que são. Nem um nem outro têm consistência — o jovem ainda estuda, mas infelizmente duvido que alguma vez seja um universitário, apesar de não duvidar que vá à queima das fitas com os seus amigos beber lá um copo, pagando o que for preciso para disfrutar desse momento. O homem, vamos ver quanto tempo mantém a sua farda do ICNF, o alívio do salário.

O alívio momentâneo não é tanto do dinheiro, que não há-de fazer assim tanta diferença nas suas vidas, mas da vergonha social. Da vergonha de serem vistos como pé-rapados, pobres diabos, o prémio é o de dizerem “olha como cresceu bem, que belo jovem se tornou, imaculado”. A vergonha vai guardá-la ele, porque só ele conhece a fraude, e provavelmente vai tapá-la o mais que puder, dele mesmo. O mais velho sabe mais e melhor. Disfruta apenas do momento, do alívio, da sorte, de lhe ter calhado a ele desta vez este doce, que vai aproveitar, porque “enquanto o pau vai e vem folgam as costas”.

Aos 45 anos descobri a vergonha, a minha e a dos outros. A primeira vez que vi a descrição da vergonha não conseguia associar a palavra à emoção correspondente. Peguei na descrição e definição de vergonha e perguntei a outras pessoas se sabiam o que era, se lhe sabiam dar nome, e também não sabiam.

Gradualmente foi estando atenta a esta emoção escondida. Gradualmente, fui aprendendo a identificá-la. Conhecê-la é muito útil, porque a vergonha é como uma silva que cresce no escuro, e que mirra com o sol. Dizer alto “eu estou com vergonha” regra geral mata-a. Ela medra no escuro do silêncio, na sombra. É lá que se aloja e cresce, e invade tudo, até ao ponto que se confunde com tudo, toma conta do espaço, invade, ocupa, e cria a sua própria selva.

Adão e Eva tiveram vergonha quando descobriram que estavam nus. Essa vergonha nunca a descobri. Mas descubro a vergonha de não me saber vestir. De não conseguir vestir aquelas fardas, aqueles uniformes, que me são alheios. Mas a vergonha maior não é só a de não saber vestir aquelas roupas alheias — as roupas sociais, desde ser mulher até todas as outras — é a vergonha de as vestir mal. De me atrasar a levar a minha filha à escola, porque penso que vão sair a uma hora que afinal não vão porque está a chover. Chover conta como mudança de contexto, quando na véspera dizem que vão sair na mesma, e que há abrigos? Mas isto vale? De súbito, algo que pensei que valia — chegar à hora da saída — não vale — e está na escola e chegou atrasada. De quem é a vergonha? É minha, que a levei atrasada. Ninguém precisa de me dizer nada. Falhei. Só a minha chega atrasada. Podia haver outras também a chegar atrasadas, não importa. O mais certo é que nada importe, e eu tenha feito a coisa certa — deixá-la dormir e ir bem disposta para escola, mesmo assim acordando com um alegre “Ups! É tarde! Vamos chegar atrasadas!” E chegar a horas não mata a vergonha na mesma, porque me parece algo tão absurdo, na verdade, tão secundário: chegar a horas, vestir roupa sem nódoas, saber vestir-se para a ocasião, parecem-me superficialidades que são, elas mesmas, uma vergonha.

A quem devo responder primeiro? A mim ou às expectativas dos outros? O problema só surge quando há uma diferença, e uma diferença que envergonha. E a vergonha invariavelmente é sobre as roupas, materializa-se nas roupas, nos comportamentos, nos dizeres certos, nos scripts que vão desde “está um lindo dia” até “os meus pêsames”.

“O essencial é invisível aos olhos”, dizia o Principezinho, e tem razão. Mas quem vê o invisível além de nós?

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