O mercado do sofrimento

Com tantas fontes de prazer no mundo, é triste que seja o sofrimento que marca a nossa existência tão frequentemente. O sofrimento físico é sem dúvida algo a que gostaríamos de escapar — desde a doença à dor, e louvamos, e bem, os méritos da medicina que nos livra dos males do corpo. E se a louvamos, pela mesma medida temos de condenar a sua ausência, nos lugares onde ela não chega, havendo conhecimento e tecnologia disponível.

Mas, infelizmente, temo que a medicina do corpo esteja mais avançada do que a medicina da mente. O sofrimento psíquico, emocional, o sofrimento invisível, continua. Poderemos dizer que andam de mãos dadas. E realmente, o sofrimento da falta de boas condições de vida, de uma casa segura onde viver, o sofrimento da fome, o sofrimento da miséria, da ansiedade do futuro, combinam a falta de condições materiais para uma vida plena com a humilhação social, a rejeição, o desamor, o desamparo e o desalento por parte não apenas dos elementos não-humanos que nos condenam à miséria corporal, todos os micróbios e virus que nos calcinam sem a nossa permissão, que ora nos invadem ora nos abandonam deixando-nos à mercê de frascos de probióticos, mas também do desrespeito das nossas necessidades humanas por parte de outros seres humanos.

Há gente que gosta de ver os outros a sofrer. Mas também há muita gente que não gosta. Não me pretendo ocupar nem de uns nem de outros. Pretendo ocupar-me daquelas pessoas afortunadas que escapam ao pior da ralé e da miséria, que pretendem, de uma forma considerada normal pela sociedade, exportar o seu sofrimento e mal estar para as outras, não por lhes quererem algum tipo de mal, mas porque não quererem aquele mal para si.

O sofrimento psíquico, de origem social, está profundamente assente em expectativas que temos para nós e para os outros. E quando estamos muito distantes dessas expectativas, sofremos.

É incrível como somos bombardeados sem qualquer descanso com expectativas — de beleza, de sucesso, de aparências. Todo o mundo parece querer estar ali para nos ajudar a alcançar esse sucesso, que não chega nunca, por ser inalcançável.

É nossa obrigação manter uma higiene saudável desse bombardeamento, um obrigação de, no fundo, não nos deixarmos manipular.

É sabido que o mundo está cheio de vigaristas, abusadores e usurpadores, e há que aceitar a sua existência. Pobre de quem se deixa enganar. Porque de pobreza se trata, a pobreza de ser incapaz de manter as nossas fronteiras intactas perante esta horde. A saúde preventiva é da nossa responsabilidade, e a felicidade só de nós depende, de não abrirmos a porta aos invasores.

Mas também não é destes miseráveis que me ocupo.

Quero ocupar-me dos que não são vigaristas.

Quero ocupar-me dos que apenas não querem o sofrimento para si.

Quero ocupar-me dos que sofrem e não querer sofrer.

Quero ocupar-me do mercado do sofrimento entre os que sofrem e não gostam de sofrer nem de ver sofrer.

É este o mercado da culpa e da vergonha.

De quem é a culpa de não alcançarmos as nossas expectativas?

Quem distribui essa culpa? Quem distribui essa vergonha?

Quem a cria, e acima de tudo, quem a alivia?

Quem nos diz que somos puros, e imaculados, ou que seremos, nesta vida ou noutra?

Quem nos diz que nada disto é da nossa responsabilidade?

Quem fica com este sofrimento em nome dos outros?

Quem aceita esta responsabilidade, quem é o novo cordeiro de deus?

A quem pagamos por este serviço? À igreja, que nos diz que viver é sofrer e que nos livramos do sofrimento na vida eterna?

Pagamos aos psicólogos, para que nos digam que a culpa foi dos nossos pais, ou da sociedade, devolvendo-lhes a graça?

Pagamos aos médicos, que nos dizem que a culpa é do corpo, de uma natureza injusta, mas não nossa?

A quem pagamos por este sofrimento contra-natura, em que é a sociedade que nos coloca e de seguida nos frustra as expectativas para gerar uma insatisfação permanente?

A quem pagamos com a nossa servidão, quem são os novos amos?

A quem pagamos para nos dizerem que não temos culpa de, para não sofrer, exportamos o sofrimento para outros seres humanos e não-humanos, para nossa aflição moral?

A quem pagamos para que nos digam que fizemos tudo o possível, que realmente não tínhamos alternativa, a não ser comportar-nos como pessoas do nosso tempo, absolvidas pelo coletivo?

A quem pagamos para nos sentirmos pouco dignos, realmente não responsáveis pelos nossos atos?

A quem pagamos para que nos digam que não podemos ter culpa nem vergonha de coisas que nunca estiveram nas nossas mãos nem foram da nossa responsabilidade?

A quem pagamos para que nos digam que transferimos o sofrimento para quem não pode fugir dele, para que o absorvam, para que o engulam e se matem com ele, levando-o para longe de nós, mantendo o nosso ego intacto?

A quem pagamos para nos dizer que o sofrimento tem de ser sempre enviado para baixo, porque para cima dói mais, custa mais?

A quem pagamos para nos dizer que o ego não pode ser tocado senão rebenta e arrasta tudo com ele?

A quem pagamos para escapar incólumes a este ego coletivo cada vez mais monstruoso, intocável, de intocáveis, cuja única forma de enfrentar é não enfrentar, e cuja forma de vencer é simplesmente viver a nossa vida?

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