O papel, qual papel?

Dizia-me uma psicóloga, sobre o medo que demonstrei de autistas entrevistarem profissionais de saúde repletos de ignorância e ideias capacitistas sobre o autismo, que não há que ter medo, é só antecipar o que pode acontecer, estar ok na situação, ignorar, “put on a character” — desempenhar um papel, e dizer, “este é o meu trabalho para o dia de hoje”. Mal acabou de o dizer, olhou para mim, e disse: “a tua cara diz tudo”, e rimos.

Digamos que não consigo fazer nenhuma das coisas mencionadas acima: antecipar, ignorar, estar ok na situação, e desempenhar um papel. Não consigo antecipar, porque as ações das outras pessoas são tão alienígenas para mim como eu sou para elas. É impossível ignorar e estar ok na situação, porque me vai afetar. E acima de tudo, é impossível desempenhar um papel.

A psicologia devia saber que os autistas podem ter muitas dificuldades a desempenhar um papel, “put on a character”. Na interceção da filosofia e da psicologia, esta incapacidade foi brilhantemente trabalhada no livro “The empty core”, de Jeffrey Seinfeld, dedicado aos esquizoides:

The key word used by Sartre is “play”. The work of Winnicott would suggest that the idea of playing a role but not fully becoming the role is not an indication of pathology. The problem for the schizoid patient is that he cannot “play” at the role. The role is taken too seriously, the schizoid becomes fully identified with it. One may securely play at a role and identify with it only if one is not afraid of losing oneself in it. Seinfeld, J. (1991). The empty core: An object relations approach to psychotherapy of the schizoid personality. Jason Aronson.

Tenho poucas dúvidas que muitos dos exemplos que estão no livro para “ilustrar” a teoria psicanalítica subjacente são crianças e pessoas autistas. Melanie Klein e os seus acólitos deviam ter vergonha da interpretação que a sua mestra faz de uma criança com características claramente autistas, Dick, e a “incapacidade na formação de símbolos”. A criança de 4 anos, “indiferente à mãe e à enfermeira”, não se tinha “adaptado ao seu ambiente ou realidade”, expressava “pouco desejo de conforto ou amor” e exibia uma diminuição da sensibilidade à dor. Como não tinha alucinações, foi diagnosticado com personalidade esquizoide. A criança corria em círculos à volta de Klein “como se ela fosse uma peça de mobília”. Olhava para o espaço distraído sem interesse nos objetos na mão. Klein “astutamente” comparou a criança às neuróticas, mas Dick não exibia sinais de ansiedade latente. Dick não mamava, e quase morreu à fome nos primeiros meses de vida (e mencionam que a anorexia é comum nos pacientes esquizoides). Também foi difícil à criança, mais tarde, a ingestão de comida sólida. Com uma ama que o amava, Dick “melhorou”. Klein acreditava que os “déficits” de Dick tinham a ver com uma “defesa prematura contra o sadismo” e que o ego não desenvolveu uma vida de fantasia, e a formação simbólica da criança estagnou.

Dick era “indiferente” à maioria das pessoas e objetos exceto portas, maçanetas de portas, e o abrir e fechar de portas. Não tinha interesse em brinquedos. E eis que Klein aponta para dois comboios, um grande e um pequeno, que ela designa de “comboio papá” e “comboio Dick”. O miúdo pega no comboio a que ela chamou Dick e foi com ele até à janela, e chamou-lhe Estação. A interpretação de Klein foi que Dick estava a ir para dentro da sua mãe: “Dick was inside the Dark Mommy”. é aqui, confesso, que sinto uma vergonha alheia gigante. Primeiro, Melanie Klein diz que a criança é incapaz de simbolizar, depois, cria os símbolos por ele, e atribui a escolha do comboio com base no nome que ela deu (a criança pode simplesmente ter interpretado que o comboio Dick era para ele, não que o simbolizava a ele!!!!). A sério que ninguém se lembrou disso na equipa de investigação?

Como se a situação não fosse embaraçosa o suficiente, Lacan, em 1988 (não foi assim à tanto tempo, credo), diz que o “tratamento” de Klein consistiu em “introduzir a verbalização”, ou seja, como Klein deu o nome ao comboio, ela simbolizou pela criança. E espera-se que a criança (claramente autista) adopte a simbolização da mestra! Porque como “não pode simbolizar”, outros simbolizam por ela, dão os nomes por ela, enfim, pensam e existem por ela!

Disse-me, outra psicóloga, de quem gosto, que aparentemente tenho um sistema de regulação emocional “de bebé” e “primitivo”. A razão é necessitar de uma co-regulação ambiental. Não me é possível “put on a character” para diminuir ou eliminar a dor, o sofrimento, as agressões, os “ataques” (reais ou percebidos), o gaslighting, que surge da diferença entre pessoas que vivem “sem máscara” ou “sem papel”, das que fazem um “teatro para os outros”, protegidas por esse mesmo teatro.

O teatro é uma proteção emocional, compreendo-o. Deve criar, imagino, uma distância emocional porque “não é a sério”. Deve ser, imagino, como ver um filme. “Não é a sério”. Claro que eu não consigo ver filmes violentos nem notícias violentas, que tipicamente inundam as mesas dos almoços de família e dos restaurantes. Esse filtro, essa distância, não existe, ou pelo menos, não existe dessa forma. Existe noutra forma, existe através da função. Uma função não é um papel, um fingimento. Este é o meu trabalho para o dia, não é este é o meu teatro para o dia. Tem de haver, quero pelo menos acreditar, uma diferença entre vestir uma bata de médico e brincar aos médicos e ser médico. Ser médico, de qualquer tipo, não pode ser um papel. Essa passagem subtil entre a função e o carácter-character basicamente aniquila toda a possibilidade de existência de uma ética humana e deontologia. É possível ter-se carácter a fazer um character?

A função do trabalho, pelo menos estava, ligada com um propósito, um ethos, profissional. A regulação dos procedimentos estava (?) associada a um conjunto de práticas sociais, mais ou menos “baseadas na evidência”, no retorno do que aconteceu, capazes de evoluir, não ficarem presas no tempo, e levar à excelência. Hoje, estes pressupostos da operação humana são risíveis, obsoletos, dignos de figurar num manual de antropologia humana nas versões humano 0.0 e 1.0. Se o humano 0.0 era o “selvagem ou mamífero primitivo”, e o 1.0 era o homem civilizado pelas práticas sociais e instituições que nos protegiam de uma vida “cruel, bruta e curta”, para parafrasear Thomas Hobbes, o ser humano 2.0 é o que antecipa, ignora e desempenha um papel.

Não surpreende que no meio de todo este cinismo onde o trabalho não tem outro propósito a não ser desempenhar um conjunto de rotinas e procedimentos esvaziados de sentido organizados de uma forma burocrática onde todos os trabalhos são bullshit jobs, “sais que não salgam”, que não exista inovação. Existem, sim, mudanças frequentes, de sistemas burocráticos, plataformas, códigos, obrigações que estão sempre a mudar para nos manter ocupados na corrida, ativos, exaustos, a responder a mais uma checklist, mais um inquérito de bem-estar profissional, mais um novo cinismo adicionado que por mais bem intencionado que seja é sempre entendido como um cinismo, uma tarefa a desempenhar para poder ir para casa viver realmente a vida que importa, para quem consegue despir o character sem despir o carácter.

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