Poder contar
Acordei com o dia de ontem a contrair-me o diafragma. Demasiadas tensões criaram uma garra, que lentamente se abre, com música, palavras e respiração.
A minha filha contou uma coisa que aconteceu na escola, desagradável. E disse, orgulhosa, ao seu pai: “estou-te a contar”.
Na minha casa científica, pessoas unem-se à volta de um texto onde contam coisas desagradáveis que lhes aconteceram.
Num webinar que organizo, os participantes estão em silêncio, e não sei porquê.
Estarão à vontade para contar? Como ler o silêncio?
Contar requer intimidade e confiança. Contar requer tempo. Contar coisas desagradáveis que nos aconteceram requer ainda mais tempo e confiança.
Disse-me uma amiga que empatia quer dizer em pathos — na dor, no sofrimento.
Compartir o sofrimento é aliviá-lo.
Esse alívio é, ou pode ser, reparador.
Por outro lado, a recusa de aceitar o sofrimento do outro, causa mais dor.
No webinar, uma pessoa conta que não sabe contar.
Trata-se de discalculia — a matemática, os números, são ilegíveis pela mente. A pessoa torna-se assim “patologicamente humanista”.
Diz-se com frequência que as pessoas calculistas são frias.
Talvez respirem melhor, talvez não acumulem tensões no diafragma.
Mas que sabemos nós, dos que calculam e dos que não calculam?
O que sabemos nós, dos que não sabem ou não podem, contar?