Por uma sociedade de deficientes

Li um texto que me intrigou — a neurodiversidade como política. O debate, como o interpretei de forma completamente livre e irresponsável, diz respeito a saber se a neurodiversidade encerra alguma política em si mesma, enquanto conceito biológico, ou se precisa adicionalmente de uma ideologia normativa. Surpreendeu-me. Sou das que acredita que o reconhecimento da diversidade, incluindo a humana a nível do seu sistema de nervos, devia encerrar em si mesma um respeito por diferentes formas de existência, tendo em conta que existir é um ato político perante quem declara a nossa inexistência enquanto sujeitos cognoscentes, seres pensantes. Confesso que tive a arrogância, inocência ou ambas, enquanto bióloga, de pensar que existir é uma afirmação suficiente para a política, como o ato de respirar é prova de uma necessidade que precisa de ser suprida para se continuar vivo. Mas vivemos em tempos estranhos. Falar não é suficiente para se ter voz. Pode-se dizer o que se quiser e ser ignorado na mesma. Já não é preciso meter uma mordaça na boca com medo da palavra. As palavras já não deviam meter medo a ninguém. Deveriam ser livres, as palavras, de serem proferidas como queixumes, uma inovação bem-vinda no neofascismo que parece permitir certas liberdades individuais.

Ao ler o texto neurodiversidade como política, percebi que é mais complicado. Dizem os autores que a neurodiversidade, enquanto biologia, parece ser apolítica, ao contrário da ideologia, que é normativa. Transcrevo aqui o excerto em causa:

“Para o bem ou para o mal, se a neurodiversidade se refere simplesmente à variação neurológica, não há razão inerente para o termo não ser usado em associação com esforços para curar ou prevenir o autismo ou outras deficiências neurológicas semelhantes. Da mesma forma, essa neurodiversidade descritiva é perfeitamente consistente com a analogia publicitária do autismo ou outras condições semelhantes como semelhantes à morte ou sequestro, precisamente o tipo de mensagem que o movimento procurou combater nos seus primeiros anos (…). Se o termo neurodiversidade não tem implicações normativas, não há base para objetar para a forma como é usado nestes contextos.” Ne’eman A, Pellicano E: Neurodiversity as Politics. Human Development 2022;66:149–157.

Percebo bem o argumento. É a lavagem e esvaziamento de um termo, o da neurodiversidade, emancipatório em si mesmo, e a sua coptação por parte de redes que continuam a querer normalizar o autismo para podermos ser “incluídos”. Como a neurodiversidade está em alta, e o discurso dos ativistas vai penetrando a muralha criada à volta da desinformação sobre o autismo que tantas pessoas e famílias torturou durante décadas, um discurso que basicamente diz que também somos gente, torna-se irresistível para os neurotípicos também quererem um bocadinho. A tentação é ainda maior quando a sociedade experimenta um tempo onde “todos temos superpoderes e todos somos especiais”. O facto de todos os dias mais pessoas adultas “funcionais” virem a público como autistas, pessoas com um ar “normal”, aliviadas por terem uma explicação para uma série de dificuldades que experimentaram ao longo da vida e que pareciam ser só delas, facilitam o entendimento neurotípico de que ser autista é ser especial.

Infelizmente, “ser especial”, na deficiência, nunca contou para cima. Especial, na deficiência, é abaixo. E podem encontrar ou reinventar os termos que quiserem: socialmente, deficiente é abaixo. É o reconhecimento de uma incapacidade em alguma coisa. É o reconhecimento público de uma vulnerabilidade, um tiro no pé.

O reconhecimento público de uma vulnerabilidade, e a consequente exposição e prova de deficiência, atestada, está longe de contar como o respeito pela neurodiversidade, que deveria, naturalmente, levar à transformação social para que os ambientes fiquem mais inclusivos e melhores para todas as pessoas. O problema está em que a deficiência é medida em relação à perda de uma eficiência. E ser menos eficiente é perder uma competição, ou não entrar numa competição impedindo os que levam o prémio de ganhar, para não serem os que batem em gajos com óculos. Mas há sempre quem pense diferente. Em Curitiba, houve quem afirmasse “Fim pelos privilégios dos deficientes”.

Exemplo de imagem nas redes sociais. “Se você concorda com a gente, entre nessa luta, e vamos juntos acabar com esses privilégios, que só nos prejudicam para favorecer os deficientes.” https://www.linkedin.com/pulse/fim-dos-privil%C3%A9gios-para-deficientes-e-bestifica%C3%A7%C3%A3o-da-tatti-maeda/?originalSubdomain=pt. Na verdade, tratou-se de uma ação de marketing promovida pelo Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, vinculado à Prefeitura de Curitiba. Na ocasião, a então presidente do conselho, Mirella Prosdócimo, afirmou que o intuito era fazer com que a pessoa que se revoltou com a mensagem se tornasse “voz real’ na luta pelos direitos das pessoas com deficiência. https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/11/outdoor-em-rua-de-curitiba-pede-pelo-fim-de-privilegios-para-deficientes.html

Tradução: devíamos andar todos à batatada a testar a lei do mais forte, que é a lei da natureza, e quem sabe, da neurodiversidade. Claro que posso discorrer durante milénios sobre a verdadeira política da natureza, a política de Darwin e de Kropotkin, sem que me liguem nenhuma. A questão é se a política humana pode fazer diferente, sendo normativa e moral, a fim de respeitar verdadeiramente a existência de diversidade humana e não-humana, tendo em vista não apenas a existência, mas o florescimento. Os termos do florescimento devem ser ditados não pelo “dominante”, mas pelos próprios envolvidos. Imaginar e trabalhar para o florescimento de pessoas autistas tem de ser feito com pessoas autistas, pois são elas que sabem o que lhes causa bem-estar e mal-estar.

Para quem quiser seguir o meu raciocínio, há que ter muito claro que entendo a deficiência como o resultado de uma biologia relacional. Direi mais: uma biologia semiótica, o que é uma redundância de termos na verdade, porque a biologia é semiótica. Em termos sociais, o equivalente que mais se aproxima desta visão é o modelo social de deficiência.

Vou começar pela eficiência. A eficiência é completamente relacional: não se é naturalmente eficiente, é impossível. A eficiência não é uma característica absoluta, essencializada. Não há os mais eficientes e os menos eficientes. A eficiência não é produto da genética. A eficiência só existe em relação a uma tarefa ou competência específica. Por exemplo, só há deficiências na condução porque há condução. Se houvesse só transportes públicos, era uma deficiência bem mais reduzida. Com a necessidade de novas abilidades, novas deficiências serão criadas. Por exemplo, o uso da realidade virtual cria os seus deficientes, as pessoas que não conseguem suportar a náusea do movimento. Se o uso da realidade virtual fosse dominante nos ambientes de trabalho, esta característica de diversidade humana — a de sentir náusea — seria um fator de seleção. E parece ser isto que o mundo social resiste a entender, uma e outra vez: não há mais aptos e menos aptos. Há mais aptos e menos aptos em ambientes específicos, por isso é que a especiação ocorre por nichos.

O mundo tecnológico que temos cria os seus eficientes e deficientes no uso de instrumentos e tecnologia e na capacidade de suportar ambientes detrimentais: ruídos, sensibilidades, luzes. O teletrabalho foi a melhor coisa que podia ter acontecido a muitas pessoas autistas, porque os libertou da tortura das luzes e ruídos dos escritórios, dos almoços de trabalho, do esforço de sociabilização de forma neurotípica, olhar as pessoas nos olhos, ouvir baboseiras com muita atenção, saber quando rir de uma piada, saber quando uma piada é uma piada ou uma agressão, sem descanso, a ter de ir à casa de banho para fazer os seus stims e relaxar, ou fumar para ir lá fora, ou arranjar desculpas, sempre desculpas, para comportamentos incompreensíveis à luz de corpos e mentes com outras necessidades. O interessante do teletrabalho foi que não foi adoptado para o bem das pessoas autistas — isso seria intolerável à luz da sociedade atual — mas como uma imposição autoritária que veio de cima, justificada por uma pandemia, à qual todos tiveram de se “adaptar” ao “novo normal”, e o “novo normal” alterou a balança dos eficientes e dos deficientes. Os pobres neurotípicos sofreram com a falta de sociabilização, de toque humano, dos almoços, daquele colega que dizia piadas, daqueles momentos de descontração.

O problema de a sociedade não permitir a (co)existência de diferentes dispositivos e formas de comunicar, colaborar e trabalhar é em si mesmo a razão principal pela existência de deficiências — não se permite à pessoa escolher o meio onde é mais “funcional”. Comam todos do mesmo, e adaptem-se ou sofram.

Mas seria muito redutor ver a deficiência como “apenas social”. A deficiência é corporal, sempre que contraria o conjunto de expectativas corporais da espécie “para baixo”. Espera-se que a nossa biologia faça certas coisas, e se não faz, estamos em maus lençóis. É então que surgem duas necessidades interessantes, para colmatar as deficiências: as próteses e o cuidado.

As próteses resultam da extensão do ser humano através de tecnociência — tornarmo-nos cyborgs. E por mais que esta visão seja tentadora, a de que podemos expandir os “limites naturais” do nosso corpo através de objetos, de medicamentos, de próteses e dispositivos, é ridículo o pouco que se avançou neste campo para servir a deficiência. A tecnociência serve primeiro o complexo militar, e só no fim de linha serve a medicina pública e a deficiência, funcionando ao mesmo tempo como a legitimidade da investigação, muitas vezes eticamente questionável, sob o auspício do dual-use: a capacidade da tecnologia poder ser usada “para o bem ou para o mal”, sem dizer para o bem ou para o mal de quem. Apagar os sujeitos existentes para criar um “nós humanos” é apagar a política, mas isto sou eu que sou a bióloga dos existentes.

Felizmente, a acessibilidade tem melhorado, apesar de ainda ter um longo caminho pela frente. Estas melhorias prendem-se com necessidades de mercado: existe uma enorme população de deficientes que seria pouco inteligente desperdiçar. A virtualização do mundo teve como vantagem retirar as desvantagens da corporalização, para criar desvantagens da virtualização, criando novos eficientes e deficientes no seu uso. Muitas pessoas autistas foram favorecidas pela virtualização, sem terem de expor socialmente as suas vulnerabilidades, ostentar crachás, diagnósticos ou atestar a sua incompetência, aliviando enormemente o seu sofrimento.

Todavia, a extensão das capacidades humanas através de tecnologia não foi capaz de substituir o cuidado humano. A necessidade de profissionais de saúde autista, assistentes pessoais, de cuidadores informais e formais, de uma parentalidade por vezes nos limites do suportável, está claramente subsumida perante esta utopia de que a tecnologia dos libertará dos sofrimentos corporais e dos desajustes, seja por medicação, auscultadores com cancelamento de ruído ou reuniões de zoom a partir do conforto do lar, para quem tem conforto no lar e gosta de ficar em casa. Quando a necessidade de cuidado é humana, e profundamente exigente para as pessoas cuidadoras, é quando ela é mais desvalorizada. Não façam ilusões: desvalorizar as pessoas cuidadoras é desvalorizar as pessoas deficientes. Estão no mesmo barco.

No caso das pessoas autistas, estou convencida que o espectro do autismo marca um ponto extremo nas formas de sociabilidade humana. Se quisermos usar a metáfora da guerra, é uma guerra por formas distintas de existir. O autismo é uma forma minoritária de existência, e sofre ao ter de se conformar com critérios dominantes. Mas talvez por isso mesmo, sempre contou com aliados, com pessoas que nos percebem, e que preferem a nossa vivência e genuinidade de interação face a outras que usam a máscara de serem mais “bem-sucedidas”, mais “agressivas”, “rápidas”, “dominantes” e “de sucesso”. Não tenhamos ilusões, os nossos aliados naturais, as pessoas capazes de empatizar connosco, também sofrem e estão subsumidas ao “dominante”. E o facto de o cuidado de pessoas autistas ser feito por pessoas desqualificadas e desvalorizadas socialmente diz tudo sobre o valor que dão a ambos. Muitas vezes vi que não é preciso grandes conhecimentos teóricos ou científicos sobre o autismo para as pessoas nos aceitarem e estabelecerem relações de amizade e respeito connosco. O bem-estar das pessoas autistas resulta desse respeito, desse cuidado feito em todas as pequenas interações diárias, de pessoas que não querem ver-se acima de nós, mas que estão ao nosso lado.

Ter de expor socialmente uma vulnerabilidade para se ser respeitado é humilhante, não deveria ser preciso, mas infelizmente é, e sendo assim, é essencial que exista uma normatividade social forte que proteja as minorias e os mais vulneráveis.

Mas uma sociedade que valoriza diferencialmente os seus membros com base na vulnerabilidade e eficiência está condenada ao fracasso, unicamente sustentada por um ambiente tecnosocial onde algumas pessoas se consideram não só eficientes como invulneráveis. É uma sociedade que atribui migalhas a quem não pode ou se recusa a competir, que invisibiliza, acima de tudo, o que sustenta essa falsa eficiência e invulnerabilidade, como se fossem autónomos e não precisassem de ninguém para a sua “vida independente”. Fico sinceramente à espera de uma sociedade de deficientes, onde finalmente se cumpra o mantra “de cada um de acordo com as suas capacidades, a cada um de acordo com as suas necessidades”.

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