Dopamina: por onde andas?

Rui Sousa Vieira
NeuroGime
Published in
6 min readJul 3, 2024

A Dopamina é um dos neurotransmissores mais antigos na história da evolução das espécies. O seu papel foi, e continua a ser, crucial.

Hoje sabemos já muito acerca deste neurotransmissor e do seu efeito em vários sistemas cerebrais. No entanto, podemos simplificar a sua função em poucas palavras. A libertação de dopamina aquando da realização de um determinado comportamento comunica ao sujeito “repete”.

Se voltarmos atrás na história algumas dezenas de biliões de anos, podemos entender facilmente a importância que um neurotransmissor cuja mensagem que transmite é “isto foi bom, repete” poderá ter tido na vida desses seres primitivos que povoaram os mares do nosso planeta.

Dando um exemplo mais concreto, caso algum desses animais encontrasse, dentro do seu habitat, um local rico em nutrientes, era automaticamente recompensado por um pequeno pulso de dopamina. Com maior ou menor consciência (isso será tema para outro texto), esse mesmo ser terá sentido gratificação. Para além da sensação de bem-estar, esse pulso de dopamina ativou ainda os circuitos mnésicos de aprendizagem, de forma que aquele local específico fosse rapidamente guardado na memória e associado àquela sensação. O objetivo era que, pela busca dessa sensação, o animal voltasse lá uma e outra vez, aumentando as suas probabilidades de sobrevivência — “repete”.

Por isso, a Dopamina cumpre uma função imprescindível. Através de uma sensação de prazer, somos atraídos para o tipo de objetos que aumentam as nossas probabilidades de sobrevivência e bem-estar.

Mas existe uma condição fundamental para que esse pulso de Dopamina ocorra. Voltando ao nosso animal primitivo, encontrar aquele local rico em nutrientes terá sido, provavelmente, uma surpresa! Não existia a expectativa prévia de que o mesmo existisse.

Instantes antes, esse mesmo animal estaria a vaguear, executando uma série de programas motores automáticos e inatos que faziam parte da sua rotina diária. Quando encontrou aquele local ocorreu um positive prediction-error. Posto de forma simples, o resultado daquela experiência foi melhor do que a predição (expectativa) — o muito conhecido “isto correu melhor do que esperava”. Apenas nesta condição se produz um pulso de dopamina. Se o resultado for pior do que a expectativa (negative prediction-error) ou mesmo igual, não é libertada Dopamina.

Esta é a condição obrigatória para que ocorram os tão desejados pulsos de dopamina: a realidade tem de superar a expectativa.

Ao longo da evolução das espécies, todos os seres vivos foram continuamente motivados com pequenos pulsos de dopamina ao longo dos seus dias. Sempre que o resultado de uma determinada situação fosse melhor do que o esperado, eram recompensados. Por exemplo, uma tarde de sol depois de um dia de chuva, encontrar aleatoriamente um alimento com elevado teor calórico, uma brincadeira inesperada com membros do seu grupo, o encontro com um possível parceiro sexual e quem sabe, o acasalamento, … As possibilidades são várias. Estes pulsos pequenos e constantes garantiam aos seres vivos uma sensação de bem-estar.

A natureza pulsante deste neurotransmissor traz, no entanto, uma consequência menos satisfatória: a dopamina não pode ser guardada. O nosso corpo é capaz de guardar um elevado número de substâncias: glicogénio, gordura, cálcio, glóbulos vermelhos. Mas há uma coisa que não pode ser guardada: satisfação. Os pulsos de satisfação que nos movem de uma tarefa para a outra e sustentam os nossos níveis de humor não podem ser guardados, o que nos condena a uma eterna busca por Dopamina.

Independentemente do quão prazerosa uma refeição ou uma relação sexual possa ser, esse prazer será sempre temporário, e inevitavelmente surgirá a necessidade de avançarmos para o próximo estímulo que nos poderá proporcionar este pulso de satisfação. Se estes pulsos deixarem de acontecer repetidamente ao longo dos nossos dias, a apatia, a abulia e o humor deprimido instalam-se.

Inevitavelmente vos pergunto: a vossa vida consegue surpreender-vos positivamente? Ou dificilmente, ao longo dos vossos dias, a vossa experiência real ultrapassa, no sentido positivo, a expectativa?

Os dados indicam-nos que, como sociedade, as nossas vidas estão cada vez menos “surpreendentes” e prazerosas. O neurocientista Peter Sterling, no seu livro What is Health? Allostasis and the Evolution of Human Design (2020) alerta para o aumento exponencial nas últimas décadas daquilo a que chama “Drugs of Despair” (drogas do desespero). O mesmo identifica a industrialização como a origem do problema, marco na história da nossa espécie que mudou a forma como vivemos e nos organizamos a nível social e político.

O ser humano distinguiu-se entre as restantes espécies pela expansão do neocórtex e pelas novas possibilidades comportamentais que essa expansão trouxe. Deu-nos a capacidade de desenvolver ferramentas, aprender novas habilidades, comunicar através da linguagem, criar estruturas sociais complexas, entre outras.

Atualmente, o paradigma mudou. Vivemos de forma cada vez mais individualizada e em função do trabalho. Trabalho este que, na grande maioria dos casos, envolve a realização de tarefas monótonas, repetitivas, indiferenciadas e com um mínimo desafio físico ou cognitivo. Para além disto, o aumento do consumo aliado a uma necessidade cada vez maior de produtividade fez com que dediquemos uma fatia exagerada do nosso tempo ao contexto profissional, deixando pouco espaço para as relações sociais e as atividades de mestria.

Daqui surge uma gritante diferença entre o modo de vida para o qual fomos preparados e aquele em que vivemos. A consequência é a privação da satisfação, do prazer, da gratificação e do bem-estar, personificados fisiologicamente pela ausência destes pulsos de Dopamina.

Mas sendo a Dopamina tão essencial à vida como o oxigénio, os seres humanos e os seres vivos em geral encontrarão sempre formas de obterem a sua “dose”. Precisam disso para viver.

Droga, comida, pornografia, sexo, compras, jogo, tabaco, álcool, …

São estes os meios a que em conjunto recorremos para obter a nossa dose diária de Dopamina e satisfação. Estas são as “drogas do desespero” que Sterling menciona e que representam uma sociedade apática, sem propósito e sem nada que a motive e surpreenda.

Seja qual for a nossa escolha, todos prometem a mesma coisa: um pulso de dopamina tão expressivo cuja sensação de satisfação nos fará esquecer, temporariamente, a ausência de prazer que pauta a nossa vida. E assim começa um ciclo, familiar a tantos, e que muito dificilmente termina.

A partir daqui advêm uma série de consequências danosas cuja complexidade me impede de as abordar em detalhe neste curto texto.

A ideia principal que pretendo explanar aqui é que esses mesmos comportamentos não são o problema por si mesmos. São a consequência de um problema ainda maior. No entanto, o paradigma da homeostasia que vigora e molda o pensamento atual na medicina e nas ciências da saúde leva-nos a dirigir os nossos esforços para tratar os sintomas e não a causa. Desenvolvemos e aplicamos tratamentos que, tal como Sterling refere, são “low-level” — não se dirigem ao problema “macro”, mas sim às consequências e sintomas “micro”.

De que nos adianta tratar uma obesidade com o fármaco X, a cirurgia Y ou a dieta Z se a “fome” por prazer e bem-estar continua lá? Como podemos tratar uma adição tentando impedir que alguém consuma algum tipo de substância quando esseconsumo é a única coisa que lhe proporciona um momento de satisfação na vida?

Na psicoterapia, já sabemos há muitas décadas que “não podemos tirar sem dar”. Não podemos ter a expectativa de remover a comida, a pornografia, as substâncias, as compras, sem “dar” nada de volta. A dopamina é demasiado importante para passarmos sem ela. Por isso, ao apenas remover algo considerado “mau”, encontrar-se-á alguma forma alternativa de a compensar, obtendo esse tão necessário pulso de dopamina.

Sem me querer alongar mais, já vários estudos confirmaram que, sendo providenciados com um meio adequado, em estimulação e oportunidades, tendemos a afastar-nos destes comportamentos, e não o contrário.

Ou seja, os comportamentos e as substâncias em si não são o problema.

O problema reside, nas palavras de Sterling, no desespero que atira as pessoas para as únicas fontes de gratificação que conseguem agarrar.

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