Ghosting — imaturidade, mau caratismo ou nada disso?

Laura Pires
NEW ORDER
Published in
6 min readAug 23, 2019

--

(Miroslav Zgabaj — Fade Away)

Outro dia fui parar numa discussão sobre ghosting. O termo se refere a ir sumindo aos poucos, como a imagem borrada de um fantasma. Normalmente, isso se dá numa relação que está bem no início, ou até depois da primeira vez apenas. A outra pessoa vai diminuindo o contato, demorando mais pra responder, até sumir de vez — ou nunca mais responde, sem nem fazer esse movimento de ir se esvaindo. Essa forma de término é, hoje em dia, muito comum, talvez por ser facilitada pelo meio digital, e costuma ser considerada muito cruel, pois tende a ser repentina e não deixa explicações. Há também uma minoria que prefere que a pessoa suma do que venha dar explicações e desculpas que não vão mudar o fato da rejeição. Mas é inegável que rejeição sempre dói e, quando ela não é racionalizada, parece mais difícil de superar.

Na discussão em que fui parar, a pergunta era como fazer para lidar com a chateação de quando alguém faz isso com a gente, mas as respostas se desenvolveram em um nível de categorização extrema que sempre me soa pouco saudável. Vi afirmações de dois tipos: 1) “Quem faz isso é imaturo”; “É um livramento quando alguém faz isso com você, porque essa pessoa não vale a pena”; “É mau caratismo fazer isso com alguém” e 2) “Eu jamais faria isso” e “Sempre que perco o interesse, converso sobre tudo que estou sentindo com a pessoa”. Vejo muitos problemas em todas essas frases.

As frases do primeiro tipo são, pra mim, um grande exagero. Não estou aqui para defender ghosting. Conforme disse na própria discussão, acho um comportamento meio bosta e me chateia quando alguém faz isso comigo sim, mas entre ficar chateada com uma atitude e chamá-la de mau caratismo, há um abismo de diferença. Aliás, fica aí um bom conceito: é possível ficar muito magoada com uma pessoa sem que ela seja um monstro ou tenha tomado uma atitude imperdoável.

Há uma série de motivos que levam uma pessoa a optar pelo ghosting em vez de uma conversa clara e honesta. Muitas vezes, isso acontece porque estão passando por uma fase emocionalmente difícil. Não que devamos usar transtornos psicológicos como desculpa pra ser babaca com os outros, mas acho que podemos ser mais compreensivos com a possibilidade. Há pessoas que, quando estão deprimidas, conseguem explicar para as outras e pedir espaço e, parabéns pra elas, mas há também aquelas que não conseguem e não acho justo nem produtivo exigirmos esse comportamento certinho de todas. Entendo especialmente — e acho que qualquer pessoa introvertida vai entender isso — não se sentir à vontade pra dar esse tipo de explicação pra uma pessoa que você ainda está conhecendo, alguém com quem você ainda não tem tanta intimidade. É desconfortável, é quebra-clima, exige preparo. Há momentos na vida em que não estamos em condições de fazer isso. Acontece.

Além disso, quando defendemos que honestidade é a coisa mais importante de todas e que deve estar presente sempre, estamos mesmo considerando todos os cenários possíveis? Uma amiga (cis) ficou semanas falando frequentemente com um homem (também cis) no Tinder. Quando finalmente saíram, ela não gostou muito dele. Ele não era uma pessoa horrível, mas ela o achou meio bobão, em um momento diferente de vida que o dela e já pensou ali: “é, se for sair com ele de novo, vai ser só sexo”. Mas aí eles transaram e ela não curtiu. Disse que, pra ela, não rolou química e que achou o pau dele muito fino. Não achando adequado dizer isso pra ele, ela deu uma desculpa qualquer. Ele insistiu por mais um tempo e ela nunca mais respondeu. Ok, você pode achar o motivo dela fútil e problematizar o falocentrismo da afirmação, claro, mas isso não muda que os motivos que a levaram a não querer mais sair com ele são coisas que não soariam bem e só serviriam pra machucar o cara. Nesse caso, teria sido mesmo melhor que ela sentasse com ele e explicasse os motivos?

Independente dos motivos que levam alguém a sumir em vez de conversar, não acho que seja uma atitude imperdoável, muito menos que se qualifique como falha de caráter. Tenho me incomodado cada vez mais com esse tipo de afirmação categórica quando se trata de relações humanas. Acredito, hoje em dia, que quando dizemos coisas como “jamais faria isso” e classificamos determinado comportamento como inadmissível, estamos na verdade julgando demais os outros e olhando muito pouco para nós mesmos. É muito fácil dizer que jamais faria algo em um contexto hipotético, é uma afirmação vazia. A verdade é que, na hora em que vivemos a situação é que descobrimos como agiríamos e às vezes nos surpreendemos. Pode até ser que, realmente, não faríamos tal coisa, mas isso não significa que somos melhores do que aqueles que fazem ou fizeram em algum momento da vida. Algo que pra nós é tranquilo ou pelo menos factível, às vezes exige um esforço emocional gigante de outra pessoa.

Com isso, chegamos à questão da maturidade. Estamos acostumados a relacionar a capacidade de ter conversas honestas a sinal de maturidade e ghosting como imaturidade, pois seria uma forma de não encarar uma situação de conflito. Acho que até pode ser uma questão de imaturidade, sim, mas novamente: ninguém é maduro o tempo todo. A pessoa pode ser muito madura pra coisas nas quais não somos e ter dificuldade em lidar com coisas que pra nós são simples. Isso é apenas mais um sinal de como as pessoas têm vivências e pontos fortes e fracos diferentes umas das outras. Dizer que é livramento quando alguém nos ghosteia porque essa pessoa é horrível é algo que só faz bem para nosso ego rejeitado, mas que não se sustenta na realidade pois simplesmente não dá conta da complexidade humana e do que leva todo mundo, inclusive nós mesmos, a às vezes agirmos de uma maneira meio escrota.

Além de ninguém ser maduro o tempo inteiro e em qualquer situação, ninguém também é coerente o tempo inteiro. Todo mundo tem seus princípios e intenções, mas às vezes simplesmente erramos. Por saber que eu mesma sou falha e passível de erros que não condizem com as teorias e condutas que defendo, acho que devo aos outros ser compreensiva quando eles fazem coisas que considero erradas. Me soa como prepotência da minha parte categorizar como “imperdoáveis” ou “inadmissíveis” alguns comportamentos e atitudes que são apenas humanos. Já fiz muito disso e, hoje, acho que só serve pra me afastar das pessoas. Entender que todo mundo pode errar e que isso é uma questão da pessoa, não algo sobre mim, me faz ter muito mais empatia quando alguém erra comigo, me faz estar mais aberta para segundas chances. E, pessoalmente, posso dizer que algumas das relações mais íntimas, profundas e queridas que tenho na vida surgiram de segundas chances que dei a alguém e/ou que alguém deu a mim.

Isso tudo quer dizer que, se alguém ghostear você e ressurgir dois anos depois, você deve perdoar e voltar pra pessoa e que tá liberado sair ghosteando por aí? Claro que não. Você faz o que quiser da sua vida. Você conhece suas prioridades e limites. Além disso, entender que todo mundo erra e não definir o caráter dos outros com base em uma atitude ruim não significa necessariamente desenvolver uma relação íntima com a pessoa que errou com você. O que estou fazendo nesse texto é compartilhar como desenvolver essa empatia maior por atitudes que não aprovo ou sequer compreendo me fez bem, tanto pessoal quanto interpessoal. Ao exigir menos dos outros, exijo menos de mim mesma. Sinto que as relações ficam mais leves assim. E, muitas vezes, o que sustenta uma relação agradável por muito tempo, é justamente a leveza da capacidade de enxergar o outro como um ser humano inteiro, com suas qualidades e falhas.

--

--

Escrevo sobre relações de afeto. Instagram: @_laurampires . Contato profissional: contato.laurampires@gmail.com .