Primos, YouTube e a “nova” indústria de entretenimento

André Luis Teixeira
NEW ORDER
Published in
5 min readNov 6, 2016

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Meu priminho de 6 anos veio me visitar um dia desses e, como o bom parente que sou, me dispus a entretê-lo um pouco. Para uma criança dessa idade, há muito iniciada no mundo digital, brincar é sinônimo de jogar vídeo-game — o que não é nenhum sacrifício para mim.

Créditos: 9gag.com

Depois de algumas horas disputando o controle do PS4, resolvemos descansar e assistir um pouco de Netflix. Ao perguntar sobre o que ele desejaria assistir, me surpreendi com sua inquietação. Ele insistiu para que trocássemos para o YouTube. Curioso, eu o perguntei se ele não preferiria assistir à algum desenho animado ou coisa do tipo. Sua resposta foi ainda mais chocante:

“Eu quase não assisto TV. Prefiro ficar no YouTube. É bem mais legal”

Representação quase perfeita de como eu vi meu primo depois dessa frase. Créditos: The Family Gaming Team.

Após passá-lo por uma série de perguntas, percebi que seu gosto era relativamente variado para uma criança de 6 anos. Além de gostar de Minecraft, ele também acompanha vlogs, assiste desenhos com direitos de distribuição claramente feridos e segue canais de gameplays variados — onde aprendeu a gostar de GTA V.

Apesar do conteúdo eclético, os canais — exceto as animações, claro — tinham uma importante semelhança: os vídeos eram feitos por jovens sem grandes conhecimentos de edição com câmeras semi-profissionais, que se filmam em algum cômodo da casa. E isso me incomodou — mais do que deveria, eu sei.

Para entender melhor o meu estranhamento, é necessário uma leve contextualização da minha infância. Como boa parte da criançada que viveu a mudança do século, eu passei meus anos de pequenez bombardeado por megaproduções voltadas ao público infantil¹. E para alguém tão acostumado a tal padrão de qualidade proporcionado pelos gatekeepers da época — onde até mesmo animações como a do Max Steel possuíam mais de cem profissionais trabalhando — assistir um “episódio” de Minecraft, com roteiros e dublagens questionáveis, é penoso.

Isso sim que era desenho bão! Créditos: Max Steel (A série)

O fato do meu primo escolher dedicar seu tempo a este tipo de conteúdo é ainda mais surpreendente quando coloco em contraste com a quantidade de animações, filmes e novelas disponíveis para sua faixa etária.

Aparentemente o rapazinho não é a única criança brasileira que parece preferir o site de vídeos do Google: uma pesquisa feita pelo “Meio & Mensagem” apontou que cinco entre as dez celebridades mais influentes entre jovens brasileiro são youtubers. A quantidade de inscritos nos maiores canais do site e os números absolutos apresentados pela empresa parecem confirmar este cenário.

E então, o que está acontecendo?

Por que tantas crianças e adultos estão trocando o conteúdo tradicional (estruturado e planejado por profissionais) por imagens com qualidade baixa, (quase) sem roteiro, produzidos numa epifania adolescente?

Conversando com o moleque, percebi uma busca — no seu caso inconsciente — por autenticidade. Ele parecia se divertir muito mais com o gameplay eufórico e as risadas sinceras do Tazercraft, do que com os longos 25 minutos de histórias “controladas” e padronizadas. Acho que para ele, existe uma sensação de que tudo pode acontecer nestes poucos minutos de vídeo. Essa é a vantagem de se ter conteúdo produzido por pessoas, e não empresas.

Outro importante fator que contribui para o sucesso destes produtores está no formato dos vídeos: curtos e sem grandes arcos, permitindo ao público acompanhar os “episódios” em praticamente qualquer lugar — antes do dentista ou durante o horário de almoço — sem sentir que perdeu algo, caso tenha pulado alguns vídeos. A prova da eficiência deste formato está no uso dele pelas maiores apostas do Cartoon Network nos últimos anos: Apenas um Show e Hora de Aventura.

A última característica comum entre os vídeos que eu investiguei é a frequência. A grande maioria dos canais de sucesso no Youtube tem, no mínimo, um par de vídeos publicados por semana. Diferente dos produtos oferecidos por empresas de entretenimento, os youtubers podem oferecer conteúdo continuadamente, passando uma sensação de que eles estarão lá, não importa o que aconteça. Acho que isso cria uma ligação maior entre produtores e consumidores, uma vez que vivemos num mundo com um número cada vez maior de opções de lazer (quem nunca deixou de acompanhar uma série depois de um hiato ou troca de temporada?).

O problema

Tudo que foi comentado até agora condiz com a principal corrente de pensamentos que é propagada na internet. No entanto, existem sérios problemas que cercam alguns dos principais líderes de audiência do Youtube.

Se por um lado, o conteúdo é mais original e flexível quando produzido por pessoas, ele também é mais irresponsável. Não é raro assistir vídeos de canais voltados à crianças e adolescentes que possuem palavrões, gameplays de jogos proibidos para menores de idade, ou até mesmo referências sexuais e à bebidas alcoólicas.²

O mais preocupante é que a maioria dos adultos subestima o alcance e a relevância destes vídeos para as crianças. Para piorar, este cenário continua se fortalecendo e perpetuando as ideias dos canais digitais de sucesso que partilham destes problemas; atingindo milhões de jovens e muitas vezes superando os números de audiência da TV aberta.

Portanto, é necessário que pensemos mais sobre esta nova indústria não só em sua capacidade benéfica, mas também nos seus malefícios e suas responsabilidades.

Ignorar os motivos que fazem com que meu primo despreze produções empresariais de entretenimento (estrategicamente construídas para entretê-lo) por vídeos “caseiros”, não só torna o fenômeno incompreensível, como também me impede de ter um pensamento crítico sobre o assunto. Entender este cenário me permite melhorá-lo e, principalmente, me ajuda a conhecer melhor meu parente favorito.

¹Entenda-se por megaproduções quaisquer iniciativas de entretenimento infantil que recebiam grande investimento. Nestas condições, tanto animações como Dragon Ball Z, quanto programas de palco brasileiros, como o Programa da Xuxa, podem e devem ser levados em consideração.

² Não é minha intenção “moralizar” a internet, dizendo o que deve ou não deve ser visto. A própria natureza da rede dificulta qualquer tipo de controle ou censura e eu entendo que para um jovem curioso não existem barreiras. Porém, isso não quer dizer que não devemos nos preocupar e buscar maneiras mais seguras de filtrar aquilo que é propagado para nossos filhos, netos, irmãos e etc.

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Escritor e host do podcast Ctrl F (http://bit.ly/ctrlfpodcast). Escrevo sobre o universo digital, as novas mídias, cultura e criatividade na internet.