Um projeto de sociedade que honre a diversidade humana

Este é o meu sonho. E não ver no noticiário uma criança negra sendo executada pelo Estado.

Flay Alves
NEW ORDER

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Foto: Redes Sociais/ Jornal O Globo

Escrevo este texto no calor da comoção. Palavras assim costumam ser as mais sinceras, e também as mais perigosas.

Eu estava postando um vídeo sobre minha expedição pela América Latina quando vi a foto de Ághata Félix, 8 anos, na minha timeline do instagram.

Assassinada por um tiro de fuzil nas costas, o gatilho foi puxado por um policial.

O gatilho foi puxado por uma política de segurança pública que faz uso da força armada de maneira desproporcional e que tem se mostrado letal para civis. Em outras palavras. Cruel, injusta e desumana.

Ela, criança moradora de favela. De pele negra e cabelos crespos.

E inevitavelmente eu quis chorar. Mas para ser sincera? Essa foi uma das poucas vezes que isso me aconteceu.

Talvez por lembrar das minhas sobrinhas, que talvez nem sejam consideradas negras por essa sociedade que adora embranquecer “pardo”; ou talvez porque hoje já imagino meus filhos correndo pela sala, e quando penso nisso, sempre visualizo uma criança negra com cabelo black power como o meu, o fato é: eu chorei de verdade.

Não foi aquela indignação em busca de validação social e para receber carimbo de cidadão do bem. Eu só fiquei com raiva. Até de mim mesma.

Planejando uma viagem pelo mundo, enquanto os meus são assassinados pelo Estado. O racismo faz isso conosco, ele nos rouba até mesmo a vontade e a sensação de que temos direito a felicidade, nos faz sentir inclusive que não temos direito a isso, que é feio desejar ser feliz.

Como poderíamos se enquanto isso estamos sendo executados?

Cara, eu tô num momento da minha vida que eu tô muito de boa com algumas coisas, enveredando pela militância do bem viver, sempre afirmando a mim mesma que ser uma mulher negra feliz e tornar-se símbolo/representação disso é um ato revolucionário.

Mas tem uma outra parte de mim que às vezes quer mandar um foda-se para esse país que invisibiliza as nossas questões. Nos tratam como números. E não como sorrisos que se perderam em meio a tiroteios, sonhos que nunca vão se concretizar.

Helicópteros da polícia sobrevoando escolas? Se esse fosse o dia a dia da sua filha, você ia dormir em paz?

Menina de oito anos sendo assassinada com tiro de fuzil enquanto voltava para casa? Isso é segurança pública? Ou é genocídio público?

E eu não paro de pensar no quanto tudo isso tem a ver com a classe média e afetada desse país. No quanto tudo isso tem a ver com gente que acha que morando em condomínio bem murado, mesmo que a cidade onde viva esteja em situação de guerra diária, vai estar protegido.

Protegido do quê mesmo? Dos seus preconceitos que tipificam quem vai para o corredor da morte? Gênero, cor, orientação sexual, região de origem e opção religiosa.

E eu não paro de pensar também em nós, filhos de trabalhadores, que ascendemos e conseguimos conquistar diploma à base do muito suor dos nossos pais. E no quanto às vezes nos tornamos tão afetados quanto.

Me fez lembrar do texto de Joaquim Barbosa quando foi ombudsman por um dia da Folha de S.Paulo. Ele disse o seguinte:

“Choca-me, por exemplo, a ausência do olhar do negro, do mulato e de outros segmentos sociais culturalmente e socialmente identificados com essa relevante e majoritária parcela da nossa sociedade. É como se o jornal e os seus colunistas se dirigissem exclusivamente às classes média alta e alta, supostamente caucasiana, a que muitos jornalistas equivocadamente julgam pertencer.”

E não apenas os jornalistas, mas a sociedade de modo geral se comporta como se falasse exclusivamente com as classes média alta e alta. E mais: supostamente e equivocadamente se julgam pertencer a esta.

E eu vejo isso acontecer num dos meio de comunicação mais acessíveis e interativos de hoje em dia: as redes sociais. Gente que ovaciona e deseja o glamour, mas não tá nem aí para a conquista da dignidade coletiva.

Legiões e legiões de pessoas se importando e aplaudindo o prato do dia do famoso X ou Y, e não estando nem aí para as questões que realmente nos afetam.

O pacato cidadão que antes se chocava ao ver a violência na TV, agora solta uns emojis tristes e reposta storie de #luto, mas efetivamente? O quanto realmente nos importamos? Até que seja uma filha ou um parente nosso que esteja nas manchetes.

Talvez o meu X da questão aqui seja: para uns se importar é um ato de solidariedade. Para outros, é um ato de sobrevivência.

E é um erro grotesco quando confundimos essas duas coisas e temos a pretensa sensação de que estamos livres disso só porque temos um diploma na mão. Quanta bobagem!

Pega a porra desse diploma ou a porra do que você sabe e vai fazer alguma coisa com isso. Alguma coisa mais expressiva do que furar a bolha e se iludir achando que, só porque agora você tem um emprego melhor e já consegue frequentar espaços mais bacanas, você faz parte dessa bolha.

Fazer alguma coisa é só fazer qualquer coisa mesmo, sabe?

É tipo: se você é um engenheiro ou um advogado, que pelo menos se comprometa em não compactuar com esses contratos públicos de morte seletiva. É não tolerar racismo no seu ambiente de trabalho, é não rir da piada homofóbica do seu amigo na mesa de bar, é não achar que se a sua amiga está apanhando do namorado isso é coisa de casal, e que por isso não se deve meter a colher.

E eu digo qualquer coisa porque sei que muitas vezes, em meio à lida diária e à luta selvagem pela sobrevivência, não é fácil conseguir refletir e questionar tais coisas.

Mas se der, faça algo mais.

Quanto mais construirmos histórias e estilos de vida que combatam essa realidade, menos corpos teremos sendo linchados pela violência estatal com mira viciada e alvo tendencioso.

Eu tô me sentindo meio idiota agora, mas eu preciso verbalizar isso.

A gente precisa bater de porta e porta, não se deixar ser afetado pela falsa ideia de meritocracia, onde basta ter o Ensino Superior e então pum!, num passe de mágica estamos inseridos na dança das cadeiras e no rolê legal da sociedade.

Não existe mágica, existe só Brasil contemporâneo que ainda exonera pessoas dos seus cargos por racismo, que ainda chama negro de macaco e que tem presidente que objetiva mulher e diz que é piada.

Houve um momento dessa caminhada que eu, Flaviana, filha da Dona Neuza que não sabe ler e escrever, mas que ainda assim me ensinou desde cedo que a educação mudaria o meu futuro, me esqueci de quem eu era.

Eu, que brinquei nos pés de goiaba, enquanto minha mãe plantava cheiro-verde e cebolinha nesse mesmo quintal, para depois ir vender na rua e assim comprar meus cadernos.

Eu, que lembro das goteiras pela casa sempre que era noite de chuva. Que sempre que via o homem do picolé passar pela rua, pedia para minha mãe, e ela, sem dinheiro, trocava garrafas de 51 por um ou dois picolés.

Eu, que tempos depois tinha vergonha de dizer que aprendi inglês na marra, enquanto limpava banheiros de ingleses, porque esse foi o único caminho possível para dar esse passo e então aprender uma segunda língua.

Eu, que só muito recentemente me dei conta de que posso contar nos dedos quantas escritoras negras já li, e que me assustei muito ao me dar conta de que esse era o meu lugar no mundo: de uma mulher que é negra, é nordestina, que escolheu ser nômade, que escolheu ser escritora.

Não porque a sociedade me abriu portas e fez um caminho cheio de guirlandas para eu passar.

Não, esse caminho têm muitos espinhos. As possibilidades são sim mais limitadas, e por isso mesmo cada etapa, cada passo, deve ser refletido, analisado e ecoado.

Eu não sei bem como explicar que eu sinto que tá tudo conectado.

A morte da Ághata. A classe média e alta que fede a preconceito. A classe em ascensão que fede a uma sensação de esnobismo infundada e bastante traiçoeira. E eu, que tô em contato com a primeira, faço parte da segunda e quero integrar uma terceira: a classe de gente que constrói um projeto de vida que denuncia e exorciza esse tipo de acontecimento diário.

Agora ela, a Ághata, é um rosto no Google acompanhado de vários relatos e depoimentos como este meu, mas ela era uma vida, sabe?

Ela era uma vida que importava. E agora é uma morte que tem que importar, mas importar de verdade. Não só com tags, não só com protestos e manifestações (que já são um passo importante também), mas com mudança de rumo de vida.

Eu tô cansada de privilégios. Eu queria mais dignidade humana coletiva, e não seletiva.

Um projeto de sociedade que realmente honre a diversidade humana.

A “segurança pública” mira na gente. E nós temos que mirar nossas existências na construção de projetos de vida dignos para todos. Projetos que realmente honrem toda a vida que pulsa em cada um de nós. Os sonhos, os anseios, toda a luz que poderíamos emitir para o mundo, se não estivéssemos sendo coagidos, violentados e executados TODOS OS DIAS.

“Eu vou te dizer o que é liberdade para mim: Não ter medo! Eu digo, não ter medo de verdade. Não ter medo mesmo.”

Nina Simone

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess