Rituais hoje: fonte de significado em tempos de crise

Por que ainda faz sentido mantermos práticas rituais que remontam aos tempos primitivos?

Fernando Martins
NEW ORDER

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Cristãos palestinos celebrando o Domingo de Páscoa na Cidade de Gaza, abril de 2018. Fonte: theatlantic.com

Esse texto nasceu a partir de uma percepção pessoal, que me gerou questionamentos e acabou levando a uma breve pesquisa. Aqui adentro um pouco em uma área que não é meu foco de estudo, mas que sempre li a respeito.

Vivemos um tempo em que milhares de pessoas perderam sua fé na religião. Não compreendem mais sua próprias crenças e a ausência de uma espiritualidade é despercebida, sendo tratada como atitude primitiva e desprezível.

O batismo virou evento de apresentação à sociedade. O casamento, desculpa pra fazer uma festa grande e ostentar aos próximos o quanto se pode colocar de dinheiro em tudo. E por aí vai. Nossos velhos rituais foram, senão completamente esquecidos, transformados em meros eventos de status.

Mas a realidade é que somos carentes de símbolos. A evolução não nos privou da necessidade de ter um preenchimento para os vazios que nos são inerentes e conforto para as dores que não escapam de nossas vidas. Não há como o ser humano acreditar-se independente do que lhe traz significado e lhe conecta com o sagrado.

Hoje encontramos diversas tentativas de substituir esses antigos rituais, como o entretenimento e consumo. Mas nem de perto isso é capaz de confortar as necessidades da alma humana. Precisamos de significados de uma forma mais profunda.

Entre ritos e rituais, dos primórdios até hoje

Desde sempre, o ser humano pratica rituais. É na aceitação e repetição que se percebe sua necessidade. Sempre obedecem uma certa lógica, possuem uma finalidade, estrutura, causa e ainda agregam ao participante um resultado que pode ser individual ou coletivo.

Fazem parte do universo simbólico das sociedades humanas, são expressões culturais e podem ser cerimoniais e/ou psíquicos. O primeiro é ligado à cerimônias como casamentos, batizados, velórios ou formaturas. O segundo trabalha energias ou forças espirituais, com uso indispensável de símbolos e objetos variados.

Fala-se de ritos e de rituais. Ritos são como partes do processo de um ritual, celebram crenças, desejos ou intenções dentro de um ritual, que em si são cerimônias que objetivam celebrar momentos da vida humana. A grande maioria das práticas ritualísticas acontecem em igrejas — como as procissões, missas e peregrinações do catolicismo — , o que as caracterizam práticas sociais e de grupo.

Mas porque se recorre a essa linguagem aparentemente insensata e abstrata do ritual em vez de uma mais objetiva? Porque existem ritos e o que torna eles algo de perpetuação tão forte ao longo dos anos? Teriam sua importância como solução de problemas psíquicos e/ou sociais?¹

Natureza racional versus natureza espiritual

A psicologia vai dizer que o indivíduo moderno transfere — e aqui, podemos entender “despeja sem nem dar valor” — todas as associações psíquicas provenientes dos objetos, ações e ideias que têm contato, ao inconsciente.

Todavia, os povos primitivos conservam essas propriedades psíquicas de modo consciente: animais, plantas, pedras recebem poderes que julgaríamos no mínimo estranhos e inaceitáveis.

Civilizações primitivas no mínimo admitem a hipótese de influência maligna de espíritos maus. Porém, para o indivíduo civilizado, é vergonhoso admitir que seus males não são nada além de uma extravagância da imaginação.

Assim não havia dificuldade na relação mística do indivíduo com seu mundo objetivo (aquele que vemos e temos contato conscientemente).

A questão é que por estarmos de tal modo acostumados com a natureza racional do nosso mundo, dificilmente poderíamos admitir que fomos acometidos por algo impossível — ou pelo menos inicialmente difícil — de ser explicado cientificamente.

Logo, essa mudança de uma justificativa espiritual para a cética natureza racional que o ser humano tem feito, nos causa transtornos. E os medos que ameaçam nossa civilização, são muito maiores que os que eram, pelos povos primitivos, atribuídos à seus deuses ou demônios.

Na dinâmica da racionalidade acima do mundo espiritual, construímos um ambiente no qual a razão é o único pilar e destruímos o equilíbrio interior e exterior. Daí a crise que vemos.

Cena do ritual católico de Adoração ao Santíssimo Sacramento, Cristo em “corpo e sangue”. Fonte: https://lifeteen.com/

A crise do simbólico e o ceticismo soberbo

É para o funcionamento harmônico da sociedade e da cultura que os rituais e seus símbolos aparecem através dos tempos desde o início da humanidade. Diferentes ritos e rituais sempre serviram para lidar com diversas situações.

Se há uma saída pra essa crise, ela está em voltarmos nossa atenção aos mitos e símbolos que por muito formaram a base da vida humana.

Figura egípcia que ilustra celebração ritualística e seus deuses.

Primeira manifestação linguística de nossa espécie, os símbolos, junto dos mitos, fornecem ao ser humano um sentido pra vida, conforto psicológico, e auxiliam no exercício de imaginação e criação.

C. G. Jung apontou que “seria ridícula e injustificada presunção pretender que somos mais energéticos e inteligentes que os antigos”. O que aumentou, foi o acervo de informações do ser humano, não sua inteligência.

É uma crise simbólica o que afeta o ser humano hoje: tecnologia e raciocínio lógico são causadoras de várias perturbações psíquicas. Na evolução do pensamento humano e de vários de seus movimentos filosóficos, se deu a queda da capacidade de viver nossos mitos e símbolos.

Tornamo-nos seres humanos incapazes tanto produzir, quanto de utilizar símbolos, que não conseguimos compreender o pensamento antigo e caímos numa crise dissociativa.

Fadados à dissociação

Essa retenção em excesso de uma vida espiritual tende a gerar o fenômeno atribuído por Jung como “dissociação”: processo no qual, pensamento, ações e comportamentos se desintegram e fogem do controle do indivíduo.

É inegável que cada um de nós goste de acreditar que é senhor de nossa própria alma. Porém, uma vez que não somos capazes de controlar o modo como que os fatores inconscientes influenciam nossos projetos, tomadas de decisões, humor e emoções, é fato que não somos donos de nossa própria alma.

Porém, o ser humano moderno se declara independente dessas crenças, e sua opinião é defendida pelo fato da inexistência de uma prova científica.

Mas, uma vez que se trata de coisas invisíveis e desconhecidas, como que o indivíduo se vê diante da impossibilidade de provar a existência, por exemplo, da imortalidade? Situação essa em que o objeto da questão está além de qualquer entendimento humano, uma vez que se requer provas e evidências.

Por que então nos privar das crenças que nos mantêm alimentados em nossas crises e dão sentido às nossas vidas?

Afinal, parece haver no ser humano uma inabalável fé em tudo o que vem com o rótulo de “científico”. Mas a função da simbologia religiosa é dar significado à vida do indivíduo. Não se preocupa em ser científica.

Os que não creem, ou que tem em suas crenças uma deficiência na transmissão e representação dos problemas da vida atual, estão diante de perigos psicológicos que acabam por precisarem ser enfrentados sozinhos. Tornaram-se órfãos das orientações oferecidas pelos símbolos e rituais de sua fonte mitológica ou religiosa.

Ainda primitivos

Nossa vida que é finita, cheia de frustrações e dores, por si só explica o motivo para que a vida espiritual seja um dos maiores e mais antigos bens invisíveis da humanidade. A busca pelo sentido da vida é pré-histórica e carregamos ainda hoje mesmo com o nível de tecnologia e inteligência que conquistamos. É perigoso quando a deixamos de lado.

Os rituais servem para conter a mudança de significados, “convenções que estabelecem definições públicas visíveis”: o menino que vira homem, as duas pessoas livres que se unem. Uma vida sem rituais é uma vida sem significados claros e consequentemente sem memórias.

O que a primeira vista pode parecer sinal de maior “esclarecimento” intelectual, é apenas uma escolha por viver sem orientações, dogmas ou rituais a seguir.

Sempre fomos, e por muito ainda seremos, primitivos demais para sequer pensar em negar a necessidade de uma vida espiritual com seus rituais: somos seres pós-modernos com almas arcaicas.

Primitivo talvez seja não reconhecer o que em nós é caro desde o início.

E você, ainda mantém ou participa de algum ritual? Consegue encontrar neles respostas e/ou preenchimentos para seus vazios?

Referências:

Dias,Ritos e rituais — vida, morte e marcas corporais: A importância desses símbolos para a sociedade” ; Dantas, “Rituais” ; Casagrande, “Rituais dentro das diferentes religiões” ; Jung, “O homem e seus símbolos”; O’Malley, “Ajudai a minha descrença”.

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Designer e estrategista de marcas, apaixonado pelos símbolos e seus significados.