Outro(s) cotidiano(s)
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Em maio, a @newsfromfuturo lançou uma pesquisa junto ao @RESUMIDO.podcast para entender como os brasileiros estão lidando com o isolamento.
Criamos e divulgamos aos públicos do podcast e da newsletter um questionário online, com perguntas quantitativas e perguntas qualitativas, respondido por 840 pessoas durante os meses de maio e junho. A amostra do estudo se concentrou nas regiões Sudeste e Sul, sendo São Paulo responsável pela maioria de 34% dos respondentes, seguido pelo Rio de Janeiro com 27%, o Rio Grande do Sul com 11% e 5% de Minas Gerais.
Para acessar todos os resultados da pesquisa, é só entrar neste link.
Por aqui, destaco alguns aprendizados que enfatizam a transformação comportamental que está em curso, e como ela impulsiona outras tantas transformações capazes de moldar outro(s) cotidiano(s).
Ressalto o significado do adjetivo “cotidiano” (do latim, “quotidianus”), que se define precisamente sob as noções de tempo e dia. Ele evoca os ritmos diários, a relação tempo-espaço que organiza nosso dia-a-dia e, sobretudo, nossa existência social. Se muitos de nós vivíamos em um cotidiano pré-estabelecido, hoje, provavelmente, vivemos em outro.
Na impossibilidade de adicionar horas de vida, a noção de “ganhar tempo” tange à forma como administramos nossos minutos dentro dessa organização dos dias. Vale destacar, por exemplo, o regime de trabalho remoto como uma transformação temporal — ainda que restrita a uma parte pequena da população. Deixa-se de gastar tempo com deslocamentos diários no trânsito, em diferentes e muitas vezes inúmeros meios de transporte. Menos engessada, a rotina antes orientada para “fora de casa”, e que impulsionava a construção de um cidadão global, nômade, ganha paredes, bordas, muros definitivos e se transpõe para dentro de casa. Como evidências dessa conversão do modo de viver, destaco experiências entendidas como positivas e que não pertenciam ao cotidiano do “antigo normal”.
Mesmo em um momento tão difícil, existem novos hábitos que são considerados positivos. Escolhi ressaltá-los não motivada em construir uma perspectiva otimista, mas orientada à naturalização, ou seja, a sua capacidade de serem mais facilmente incorporados, transformando-se, de fato, em novos hábitos.
Autonomia temporal
O primeiro colocado na lista de transformações positivas é o aumento do tempo com a com a família, mencionado por 41% dos entrevistados. Sim, passamos a ter mais tempo com os familiares do que com os colegas de trabalho. Outro tópico chave na transformação do dia-a-dia para 35% dos entrevistados foi a diminuição do tempo “gasto” no trânsito, uma rotina de muitas horas diárias em diferentes tipos de transportes. Por outro lado, o tempo “gasto” para cozinhar, foi outro benefício para 23% dos entrevistados. De forma mais pragmática, o ganho de autonomia temporal se destaca para 35% que elegeram “gerir o próprio tempo” como uma dimensão positiva do regime de isolamento.
Como comentei inicialmente, a transformação “invisível” de nossa relação com o tempo-espaço influencia, mais ou menos diretamente, inúmeras dimensões: formação dos espaços, dos afetos, das interações e transações de consumo. Todas elas são capazes de moldar hábitos de um novo cotidiano e, para além disso, um novo imaginário do que a vida pode (poderia e poderá) ser.
Uma vez que esse horizonte simbólico se expande, ele não volta atrás. De formas diferentes vamos testando, errando, gostando, questionando, sofrendo, odiando. A transformação dos hábitos já consiste em novo(s) cotidiano(s).
Nessa alteração de relação temporal, “temos mais tempo nessa vida do que na vida que vivíamos antes”, sobretudo para estarmos sozinhos, nos depararmos com o melhor da solitude e o pior da solidão.
Menções que materializam a existência do tempo: ter tempo de “passar do tempo”, de “refletir”, “expandir reflexões pessoais”, ou, ainda, “me conectar comigo”, o tempo como parte da jornada de “auto-conhecimento”. Tratam-se de processos potencializados a partir dessa nossa nova relação com espaço e tempo.
Consumo em metamorfose
Debord, nos anos 50, ou se você preferir, Bauman, nos anos 2000, entre outrxs pensadores, descreveram muito bem como a vida cotidiana é marcada pelo consumo. A hipótese se confirma nesta pesquisa, já que para 91% dos respondentes a forma de gastar dinheiro mudou. Além disso, nesta amostra, cerca de 62% dos respondentes está conseguindo economizar mais do que antes da pandemia, ainda que 13% tenha conseguido economizar menos. Manifestações que conectam a relação do(s) novo(s) cotidiano(s) com a transformação de nossa relação com o consumo. (report mckinsey)
A relação mais essencial de consumo, alimentação, é a prioridade para 89% dos entrevistados, deixando a categoria vestuário, e sua condição prescindivel em último lugar na prioridade dos gastos. Por outro lado, é “no mundo virtual” que o “consumismo” transparece. A maioria dos entrevistados, cerca de 57%, afirmou estar mais conectado, e para 61% as principais mídias são as redes sociais. O fato colabora para a consolidação do “novo entretenimento”: as lives.
De segunda à segunda, 24/7, as lives atravessaram o cotidiano e rapidamente se estabeleceram como uma experiência prática para sanar nossa necessidade mais básica animal, social (e sensorial) de estar na presença de outras pessoas. Isso explica por que para 65% dos respondentes ficar longe da família e dos amigos é a pior coisa desse momento de restrição social e isolamento.
Nesse mesmo caminho, foi durante a quarentena que o Tik Tok, rede social de origem chinesa, se consolidou como uma das principais redes sociais globais, balançando o “status quo” e a soberania americana no cenário. A rede oferece uma distração temporal,
dinâmica, criativa e engraçada, um convite irrecusável aos quarentenados e que já foi aceito por mais de 2 bilhões de usuários. Um “boom” de crescimento, de poder cultural, e, claro, de muitos dados de parte do planeta. Não por acaso, Trump já manifestou seu incômodo e anunciou que pode banir a rede do país.
Entre pré-pandemia e pós-pandemia, antigo normal e “novo normal”, o intervalo entre “o antes” e “o depois”, já estamos incorporando uma nova vivência temporal que, de maneira nada sutil, reorganiza “verdades” cotidianas, nosso modo de viver.
Essas mudanças contestam o pré-estabelecido: há mais pontualidade do que atraso no regime de trabalho remoto, por exemplo. Reorganizamos as ruas, agora vazias, dominadas por motos e bicicletas, mais livres para a circulação desregrada, na contramão. O ritual de cumprimentar, que agora não é feito com as mãos, mas com pés ou cotovelos, é outro exemplo das transformações disruptivas já contempladas na nova normalidade. Um processo efervescente e agridoce, como toda a mudança.
Nessa toada, retomo o exercício de criação de imaginário, questionamento e gestos barreira, proposto pelo sociólogo Bruno Latour. Diante de um diário re-aprender para estabelecer uma outra escultura do cotidiano, é preciso deixar iluminar nossa imaginação, experimentação, re-criação de rotinas e modos de fazer. É necessário jogar luz aos que julgamos melhores: os que podem trazer um pouco mais de felicidade, ou pelo menos um pouco menos de angústia.
{01} Cotidiano
O termo cotidiano ou quotidiano significa aquilo que é habitual ao ser humano, ou seja, está presente na vivência do dia a dia. Cotidiano também pode indicar o tempo no qual se dá a vivência de um ser humano; também pode indicar a relação espaço-temporal na qual se dá essa vivência.
{02} Semio-inflação
Em correspondência ao aumento da conectividade e de todas as formas de consumo digital, escolhi o conceito do autor e teórico Franco Berardi que trata sobre a monetização do campo semiótico ( simbólico, dos signos, códigos, linguagem).
“Inflação que ocorre no campo da informação, da compreensão, do sentido e dos afetos. É quando você precisa de mais signos para, palavras, informação, para comprar menos sentido” — Asfixia: capitalismo financeiro e insurreição da linguagem, publicado pela editora Ubu. (p.76) — Franco berardi
{03} Psicovírus
Outro conceito do autor Franco Berardi, que conecta o vírus com a psicosfera, ou seja, o efeito do medo, da ansiedade e insegurança, privação de desejo que compreendem esse momento de distanciamento. Um vírus que se alastra através da hiperconectividade, da informação e que promove uma mutação “biológica, cultural e linguística”
Uma obra interdisciplinar, que vai fundo na crítica da máquina semio-capitalista, e cria um projeto que se aprofunda na origem “do lacrar”. Para o autor, a alegoria linguística se trata de um dispositivo desses tempos, onde na impossibilidade agir em outras instâncias, o enfrentamento se faz a partir da máquina semiótica, mais precisamente através do argumento e da linguagem.
Uma sonzeira elegante, sincopada e com o melhor da canção contemporânea brasileira.
“O lacre é isso. “A força do lacre tá na batalha contra o todo. É uma revolta metafísica, difusa, complexa.” Confira aqui.
Pimp My Carroça
O trabalho do Pimp My Carroça com os catadores é uma iniciativa brasileira reconhecida e premiada globalmente pelo trabalho que faz junto com catadores. Desde o início da pandemia comecei a doar e fiquei positivamente impressionada com o trabalho de compartilhamento de dados e das ações realizadas. Conheça e se animar, doe. http://pimpmycarroca.com/
Trabalhadores Essenciais
Tendo em vista a potência dos reconhecidos trabalhadores informais, sua movimentação financeira e criativa, junto com o time da Chazz São Paulo, lançamos um estudo sobre os trabalhadores não assalariados, a força de trabalho que mais cresce no Brasil. Para baixar o estudo é só se cadastrar, aqui.
Joy Buolamwini na capa da Fast Company
Se você não conhece a Joy, você precisa conhecer. Imagino que tu já ouviu falar que tanto a IBM, Microsoft e Amazon decidiram interromper seus programas de desenvolvimento facial por um ano. Por trás dessa decisão, existe a pesquisa e o trabalho da pesquisadora gender shades, que desde de 2018 (e 2019) já havia provado o viés étnico desses sistemas, globalmente utilizados. Veja aqui.
Hey AI
Como construir um mundo mais humano com inteligência artificial? um estudo feito com mais de 50 fontes de pesquisas e que encontrou mais de 144 problemas sociais relacionados à Inteligência Artificial.Um projeto urgente, necessário, feito por zero42 e a Nama. Veja aqui.
In Machine We Trust
A primeira temporada do novo podcast da MIT Technology Review, comandado pela editora chefe da equipe, Jennifer Strong. Direto ao ponto o podcast estreou com uma série de 4 episódios sobre reconhecimento facial. Veja aqui.