Alinhamento
Comecei a empreitada de escrever uma newsletter durante o South by Southwest de 2018, gênesis da News From Futuro. Ao resgatar o primeiro texto, percebi que apesar de contemplar várias das perspectivas que marcaram aquele ano, não escrevi sobre uma das experiências que mais me transformou.
”Falando sobre tempo: porque falhamos no equilíbrio entre trabalho e vida pessoal” (“Talk About Time: Why We Fail at Work-Life Balance”) foi a palestra de Dra. Dawna Ballard, Ph.D especialista no campo que se destina a estudar o tempo vinculado à comunicação humana, chronemics, traduzido por aqui como cronemia.
A palestra me fez repensar, e até mesmo abdicar, da busca por equilíbrio. Engana-se quem pensa que fui à procura de autoajuda: queria justamente a crítica. Sempre tive um incômodo com essa palavra, “equilíbrio”/”balance”. Como uma pesquisadora das qualidades e subjetividades, nunca acreditei na soberania binária do equilíbrio, em que há apenas uma direção com basicamente duas possibilidades: se você não estiver equilibrado, está em desequilíbrio.
Os estudos da Dr. Dawna Ballard falam diretamente a partir da tecnologia e sua capacidade de construir a nossa subjetividade. Como a tecnologia da linguagem constitui a nossa relação com o tempo? O significado das palavras que utilizamos para nos referir a medidas e formas de vivenciar o tempo moldam nossa relação com este que, vamos combinar, é o recurso mais precioso que temos.
A dissonância cognitiva resultante da noção de equilíbrio contribui para que as pessoas sintam culpa por não “equilibrarem” seu dia de forma adequada. Equilibrar algo, Ballard explica, significa separar as peças e quantificá-las, como se de um lado (e partir de um horário) existisse a “vida profissional” e de outro a “vida pessoal”. A pesquisa revela que pessoas pensam terem “falhado” em alcançar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal quando o que realmente fizeram foi viver a vida como ela é. Durante uma pandemia, ela pode se tornar uma grande geleca repleta de vivências e possibilidades que se atravessam na jornada de trabalho.
Como “ninguém gosta de se sentir um fracasso, principalmente pessoas que têm grande sucesso e esperam ter o arbítrio em suas vidas”, ela reconhece no conceito de alinhamento uma alternativa à ideia de equilíbrio. Uma outra palavra e, mais do que isso, uma nova possibilidade de rota que pode ajudar a construir uma relação mais saudável e de menos frustração com o tempo.
Diferentemente da balança, horizontal e vacilante, a imagem de alinhamento está em consonância com o corpo vertical. O termo concebe a ideia da gravidade, da terra e do céu e mais precisamente “da cabeça aos pés”. Além disso, a elasticidade do eixo vertical permite que alguma questão de sua vida (profissional ou pessoal) não esteja alinhada, o que não compromete todo o seu alinhamento. Na palestra, a pesquisadora propõe um exercício: pede aos presentes que escrevam em uma folha todas as possibilidades que os deixam alinhades, passando por dia, semana, mês e ano.
Minha lista da semana: passear com a cachorra, fazer pilates, parar para almoçar, cozinhar minha própria comida, tomar chá, conversar com pessoas, meditar, tomar um banho etc. Em muitos dias, o delivery salva, a meditação é trocada pelo café e pelo álcool. Tudo bem, faz parte. Não é porque eu não consegui contemplar as coisas que me deixam mais alinhada que eu estou em desalinho. Ela comenta que, nesse processo, ter a lista por perto e olhar para ela vez ou outra é, sim, um exercício que ajuda a criar memória e hábito.
Compreender a linguagem como uma tecnologia humana sempre pronta para mudar, prosseguir e evoluir, é imprescindível para que possamos nos empoderar de sua capacidade de transformação. E para que, assim como fazer um update de um aplicativo, seja possível incorporar uma palavra e seu significado ao cotidiano e evoluir nossa percepção, nosso autocuidado, nossas angústias e, principalmente, conceber novas alegrias e formas de estar no mundo.
{01} Cronemia
De acordo com a Enciclopédia de Educação Especial, “Cronemia inclui orientação temporal, compreensão e organização; uso e reação às pressões do tempo; nossa consciência inata e aprendida do tempo; usar ou não relógio; chegar, começar e terminar atrasado ou pontual. Sintetiza a maneira como alguém valoriza e percebe o tempo e desempenha um papel considerável em seu processo de comunicação. O uso do tempo pode afetar estilos de vida, relacionamentos pessoais e vida profissional. Em todas as culturas, as pessoas geralmente têm percepções de tempo diferentes e isso pode resultar em conflitos entre os indivíduos. As percepções de tempo incluem pontualidade, interações e disposição para esperar.
{02} Alinhamento
Dos significados que busquei nos dicionários o que me pareceu apropriado foi do Merriam Webster, que se refere ao a ideia de alinhamento como uma “formação em alinhamento” e como “o correto posicionamento ou estado de ajuste das peças (como de um dispositivo mecânico ou eletrônico) em relação umas às outras”.
Nessa descrição se destaca a noção de combinação de diferentes partes, uma miríade de possibilidades que requerem cuidado e atenção e vão muito além de apenas “vida pessoal” e “vida profissional”.
{03} A linguagem é como testosterona
Nessa entrevista para Folha de SP o filósofo Paul Preciado fala precisamente da tecnologia da linguagem e que a própria construção da linguagem é uma questão de sobrevivência. Indo no cerne da construção e produção de subjetividade, reconhecendo a potência de sua materialidade que performa na realidade a partir da linguagem, Preciado comenta que o “trabalho que se faz com a linguagem se faz também no corpo, na subjetividade. A linguagem é uma tecnologia de produção de subjetividade. Para mim, não há grande diferença entre a linguagem e a testosterona.”
Para quem vem pensando sobre linguagem, Paul Preciado tem boas notícias. Para ele, uma transformação epistemológica está em curso.
“Uma verdadeira revolução dos significados e dos modelos de representação do capitalismo heteropatriarcal, que hoje está em colapso. Essa mutação do modelo predominante dá origem à ‘implosão’ de todos os significantes e significados. As palavras que usamos são aparentemente as mesmas, falamos aparentemente a mesma linguagem que conhecemos, mas essas palavras e essa linguagem não tem mais os mesmos significados que antes.”
Bots do Twitter Na toada da linguagem, seguem minhas duas dicas de bots do twitter, que a partir de inteligência artificial criam pequenas histórias e poemas e, principalmente, avançam a possibilidade de produção da linguagem:
@spacetravelbot foi criado por @hologramvron e tweeta pequenas sinopses de aventuras espaciais, baseado no jogo Traveller.
@MagicRealismBot Inspirado no escritor Jorge Luis Borges, a partir de uma combinação randômica de personagens acadêmicos, criaturas míticas, disputas filosóficas, histórias são criadas a partir de um processo de automação, a cada duas horas.
Tecnodiversidade Em uma entrevista muito bem conduzida pelo Ronaldo Lemos com Yuk Hui, o filósofo chinês fala sobre diluir o significado universal da tecnologia, e que o caminho dessa diluição se dá a partir da complexidade, da diversidade e da multiplicidade, se sobrepondo ao atalho normativo da racionalidade.
Fireball: Visitors From Darker Worlds Em uma produção absolutamente (como de praxe) sensacional, emocionante, Werner Herzog decifra o significado cultural dos meteoros. O documentário vai atrás “das pegadas” dos principais meteoros que atingiram a terra há mais de 60 milhões de anos atrás e desvenda as possibilidades infinitas do cosmos a partir de poeira de espaço. Uma das combinações que me entusiasmam especialmente fora, mas também dentro das obras do Herzog é o cruzamento entre ciência a partir de Oppenheimer e de outras poéticas, a partir do olhar artístico para uma narrativa visceralmente verdadeira.
Armadura de Réxitegue Repara no título, que avança a linguagem, e principalmente groovezão de uma trupe forte em talentos Larissa & Ynaiã & Érica & Desirée #NãoRepareABagunça. Coloque em sua playlist de fim do dia ou de início, dependendo da hora que acordar.
arte da news: Shai é um multiartista transmasculine, natural de Belo Horizonte, MG, onde trabalha e estuda. Passeou pela Escola de Design UEMG e hoje cursa artes plásticas na Escola Guignard UEMG.
revisão/edição: Maria Joana Avellar, jornalista, editora e escritora mj8
tradução: Jana Felix, tradutora e profissional da linguagem , tangerineenglish
Cuidem-se e até a próxima!