Detox da Distopia

Luiza Futuro
News From Futuro
Published in
6 min readNov 24, 2019
@niegeborges

Há pouco tempo, percebi que por encontrar tanto sentido nos seres humanos e na ideia de humanidade, eu precisava cuidar da inteligência artificial. Fei Fei Li, cientista, membro do comitê de ciência na Câmara dos EUA, professora na Universidade de Stanford e responsável por criar o núcleo de estudos/laboratório AI4ALL, tem uma fala na qual afirma que “não há nada mais humano que a inteligência artificial: feita por seres humanos, baseada em seres humanos e pensada para impactar seres humanos.”

Somada a visão da cientista chinesa, Shannon Vallor, filósofa e especialista em ética e tecnologia, bem como Danielle Krettek, fundadora do Google Empathy Lab e Kimberly Bryant, engenheira e criadora do projeto Black Girls Code, são algumas das mulheres que estão articulando o desenvolvimento da tecnologia através de um olhar que vislumbra a soberania humana como ponto de partida para pensar a revolução tecnológica. Estas mulheres, ao meu ver, vêm liderando o reencontro da construção da inteligência artificial e seu potencial de iluminar a essência humana, e não o contrário.

Encontrei em todas elas uma forma muito mais profunda, multidisciplinar e interessada no conceito de co-evolução entre humanos e máquinas, paradigma que afirma a potente combinação entre os algoritmos e as ciências (e habilidades) humanas. Aprendendo com elas por meio de livros, artigos e youtube, ganhei musculatura científica para ultrapassar a arrebentação do tsunami cotidiano de notícias distópicas, responsável por inundar nossos pensamentos, esperança e senso comum sobre o futuro de nossa existência aqui na terra ou em outro planeta.

“Temos tempo” (eis aqui uma boa notícia)

“Mas temos que agir agora” (eis aqui um chamado)Fei Fei Li

Steven Pinker, psicólogo, linguista, otimista e professor em Harvard, em seu livro Enlightenment Now ou O novo Iluminismo, consegue convencer que só estamos progredindo e que há muitos fatos que nos movem para construir um “futuro melhor”. Nesse mesmo caminho, em seu ensaio chamado The Casual Power of Ideas (O Poder Casual das Ideias — tradução livre), ele reconhece que a soberania humana frente às máquinas e a tecnologia reside no poder das ideias. A formação das ideias não se trata de algo simples. É um recurso sofisticado, composto por inúmeras conexões, emoções e comunicações, na qual a causalidade é um dos motores principais dessa engrenagem.

Investigando competências originalmente humanas, o autor relembra nossa trajetória, de como nós — seres humanos — chegamos até aqui. Transformamos pedra em lança, faísca em fogo, fizemos dos animais nossos pets, nos organizamos em comunidades eficientes, redes de afeto e ainda, entre tantas outras conquistas e capacidades, conseguimos criar algo chamado inteligência artificial!

Pinker enaltece a espécie humana, e destaca a capacidade de sonhar e imaginar como uma habilidade fundamental para a nossa própria prosperidade. Em poucas palavras, o autor afirma que é a nossa capacidade de imaginar o impossível que nos distingue dos homens sapiens sapiens.

Na mesma direção, em uma edição brilhante do programa Boletim do Fim do Mundo, o jornalista Bruno Torturra entrevista Sidarta, neurocientista brasileiro e autor do livro Oráculo da Noite. Costurando diversas ciências, ele defende que a perda da intimidade com o sonho e com o sonhar está causando grandes prejuízos à humanidade.

Se a falta de sono é algo bastante falado e tratado na sociedade da ansiedade pós moderna, nossa habilidade fundamental de sonhar ainda não inspirou tanta preocupação. Me sinto aflita com o descaminho do sonho, e de forma mais direta com a tarefa de tornar o imaginável em algo pensável aqui neste planeta — principalmente no Brasil, país que mata crianças como a Ágatha, país que mata super heróis como Marielle Franco.

Vidrados na telinha, viciados em informação, expostos a uma profusão de imagens e notícias diárias, Sidarta ressalta o impacto e a influência das mídias na formação de nosso imaginário. Uma profusão de imagens e notícias que a todo o instante nutrem nossas comunicações internas responsáveis por construir o caminho de nossos sonhos. Toni Morrison, em seu livro A Origem dos Outros, fala da importância “de não sucumbir às perversões dos meios de comunicação, pois elas podem deixar nossa visão nublada”. Esse pensamento da autora me levou a pensar na popularidade do conceito da distopia.

Vislumbrando a ficção científica como algo muito mais potente do que apenas puro entretenimento, e vendo seu potencial como instrumento e disciplina de grande poder na construção do imaginário e de sonhos tanto utópicos quando distópicos, me chama a atenção a quantidade e também popularidade de produções de ficção distópicas: Black Mirror, The Handmaid’s Tale, Years & Years. Séries em que nós, seres humanos, apreciamos nossa própria impopularidade. Parece que tudo é mais divertido do que ser um ser humano, até ser um zumbi. E nessa mesma toada, é como comenta Sidarta: a gente consegue imaginar o fim do mundo, mas não consegue imaginar o fim do capitalismo.

E então, me pergunto: onde reside o sonho do progresso da raça humana?

E minha resposta seria: na imaginação! Na partícula do impossível, em nossa habilidade de sonhar.

A popularidade da utopia nunca me pareceu tão urgente, e por isso compartilho com vocês essa preocupação e desejo, nada humilde, de que possamos ganhar intimidade com melhores horizontes, na perspectiva de invocar perguntas que nos alavancam para algo avesso ao cenário da desumanização. Como seria se hoje metade do Senado fosse composto por mulheres? Como seria o futuro em que a inteligência artificial nos iluminasse como espécie e não nos supera? Que país será o Brasil quando o PIB da floresta amazônica for maior que o do agronegócio?

Finalizo essa edição com o último trecho da belíssima carta aberta do escritor Valter Hugo Mãe ao escritor Marcelino Freire: “no meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar”, e assim, enaltece a responsabilidade de qualquer progressista que se preze, que é sonhar.

01 inteligência aumentada x inteligência artificial — É interessante pensar que os termos inteligência artificial e inteligência aumentada foram cunhados na mesma época. Por um tempo, inteligência aumentada me pareceu mais popular, porém atualmente inteligência artificial é o termo que me parece estabelecido. Me parece interessante ressaltar que o termo inteligência aumentada tem como base sistemas com tecnologia cognitiva que apoiam o ser humano, seus planejamentos e análises, e a inteligência artificial enaltece a ideia de um sistema que reproduz a cognição humana e funciona de forma autônoma.

02 cyborg manifestoPublicado em 1985, Donna Haraway se proclama como cyborg em uma crítica a tecnologização da espécie humana e ressaltando processos mutacionais, anunciando o início da era cyborg.

03 pós-humanismoO termo surge da necessidade de se repensar o conceito e o entendimento de humanidade, abrindo perspectivas para uma nova forma de entender a noção humana. Para além do meio ambiente, ressalta a tecnologia e o conceito de transhumanismo no processo de evolução da humanidade.

Lygia da Veiga Pereira — cientista brasileira, uma das maiores geneticistas do mundo e fundadora do LaNCE, Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias, me emocionou com seu projeto de “criar uma biblioteca de genomas do Brasil, suficiente para representar toda a diversidade genética do país”. Num projeto grandioso e de cuidado voltado para a população brasileira, nossa diversidade genética faz com que esse sonho seja também um caminho para melhorar o tratamento de outras populações e nações.

É tarde mas ainda temos tempo — Com a mensagem de que “ainda temos tempo para acontecer”, para criticar, para provocar, repensar e reinventar, a exposição da artista Ana Teixeira que constrói seus trabalhos através da coragem de trocar com o público.

Não há abismo em que o Brasil Caiba — Em seu novo disco, Jorge Mautner evoca a ciência e o sonho ao escolher a frase do filósofo português Agostinho da Silva para nomear seu projeto, e nos convida a sonhar acordados, com o mais puro néctar do que chamo de emoção.

É isso,

Até a próxima,

Luiza Futuro

A ilustração deste mês foi feita pela Niege Borges, é uma designer e ilustradora freelancer que mora no Brooklyn, Nova York. Ela trabalha com diversas agências e clientes como Twitter, Dropbox, IBM e Canon.

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