Literacia Digital

Luiza Futuro
News From Futuro
Published in
8 min readJan 14, 2020

To read it in English, click here.

Ilustração Felipe Drummond ou @caolho

Trabalhar “no conceito” é um componente essencial para todxs pesquisadorxs de humanas, de estudos de cultura, sociologia, tendências de consumo e, de forma mais geral, para todos os profissionais da comunicação. Os conceitos, essas expressões que criamos e materializamos através da linguagem, são um recurso fundamental para consolidar o entendimento daquilo que chamamos de realidade.

Embora eu acredite que estejamos rumando para um paradigma menos pós estruturalista e por isso menos binário de compreensão da realidade, ainda é muito comum, trabalhando aqui no Brasil, se deparar com o comentário “mas isso é só questão de semântica”. Um julgamento que expressa total desdém pelo poder de vínculo e entendimento que um conceito pode estabelecer e que, ainda, revela a incapacidade de compreender a autoridade que uma expressão tem em explicar e comunicar qualquer conteúdo.

A condição móvel da linguagem é naturalmente aplicável aos conceitos. Ou seja, assim como os pronomes podem ser moldados para se adaptar a uma realidade não binária dos gêneros, todo e qualquer conceito pode se provar mutável. Libertar-se da ideia de que um conceito é algo rígido e que aprisiona a verdade é também outro ponto que me parece interessante mencionar. Ao meu ver os conceitos devem ser entendidos como agentes linguísticos e assim como um elemento químico (e vivo), são estruturas dinâmicas e que, por isso, não são imunes ao tempo, podendo sofrer alterações surpreendentes com base na renovação dos arranjos que compõem a nossa percepção da realidade.

Ressaltando o poder que um conceito tem em elucidar nosso entendimento, dedico essa edição para falar sobre literacia digital, um conceito que me parece essencial para todos nós que vivemos na era e na sociedade digital. O termo foi criado pela Associação Americana de Bibliotecas (ALA), e evoluindo o conceito de alfabetização para o universo digital a literacia digital trata-se da “capacidade de usar tecnologias de informação e comunicação para encontrar, avaliar, criar e comunicar informações, exigindo habilidades cognitivas e técnicas.”

Me debruçando um pouco mais sobre literacia digital, a primeira vez que me deparei com o termo foi em 2017, pesquisando os brasileiros que estavam fora das redes sociais no projeto “Todo Mundo Quem?”. Durante a pesquisa, estivemos em capitais brasileiras e conversamos com muitas pessoas que não eram usuárias de redes sociais porque não tinham recursos financeiros e tecnológicos. Por outro lado, encontramos pessoas que tinham acesso a smartphones de ponta, entre outros aparatos tecnológicos, de diferentes faixas etárias e classes, mas que não sabiam interagir com aplicativos (como baixar, como criar uma conta), registrar-se em redes sociais como Whatsapp e Facebook, “fazer download” de uma música, comprar alguma coisa pela internet, embora quisessem aprender.

Ainda sobre essa relação dos brasileiros que vivem tanto em capitais quanto em regiões mais ermas do país, um aprendizado que se consolidou sobre o Brasil e a sua relação com o mundo digital e principalmente com a internet, foi a compreensão de que o contexto, ou melhor, a curva de acesso tecnológico e até mesmo financeiro não significa ter capacidade de navegar e interagir de forma plena, e não o que nós nativos digitais percebemos como o básico da linguagem digital.

Para muitos brasileiros que têm smartphone, expressões como “pdf”, assim como um hyperlink, link, stand by, hacker, download, totem, aplicativo ou “um appê”, podem não significar absolutamente nada. Da mesma forma, essas pessoas podem não conhecer o ícone geralmente utilizado em dispositivos digitais para “ligar” ou “desligar”.

À medida ou curva de acesso tecnológico, com os interesses mercadológicos avança exponencialmente o conceito de literacia digital, que trata sobre a qualidade de nosso acesso e interação com a internet, é pouco conhecido. Além de ser parte das metas de desenvolvimento mundial da UNESCO, a literacia digital me parece um pilar (ou índice, se você preferir) essencial para avançar a pauta global que manifesta a necessidade de repensarmos os caminhos para usos que estamos criando na internet.

Recentemente para um projeto da Chazz, convidamos o professor da Universidade Federal do Paraná, Dr Rodrigo Botelho Francisco doutor em ciência da comunicação, e também membro parte da Escola de Futuro da USP. Rodrigo trabalha diretamente com o conceito, e revela que essa interação humano-máquina e máquina-humano pode ser sim considerada uma língua. Nesse caso, revela a necessidade de aprendermos os conceitos e códigos dessa linguagem para interagirmos com esse universo.

E ao pensar que no Brasil, segundo o INAF, 2019 cerca de 30% dos brasileiros é considerado analfabeto funcional e que cerca de 85% dos analfabetos funcionais estão nas redes sociais WhatsApp e Facebook e para muitos deles essas plataformas sociais significam a internet, me pergunto se ao perseguir unicamente a curva de acesso e não buscarmos o desenvolvimento literacia, nós estamos criando uma população duplamente analfabeta? Se ao não capacitar uma população apta digitalmente em uma era onde os dados valem mais que petróleo, poderá o Brasil se tornar um fazendão não apenas de soja, mas também de dados para países como a China e Estados Unidos?

A boa notícia é que ao aprofundar-se nas capacidades para desenvolver literacia digital, Rodrigo destaca o conceito de autonomia, sendo este a base do digital. Ao entender que é possível ter autonomia para aprender a linguagem digital, entende-se que é possível evoluir o aprendizado desta língua através da nossa relação cotidiana com a tecnologia: no uso dos próprios serviços digitais, explorando nossos smartphones, redes sociais e na interação com sistemas cada vez mais digitalizados. A partir de nossa relação com a tecnologia e de nossas experiências intermediadas pela conectividade, a capacidade de compreender a linguagem digital vai sendo atualizada e constantemente moldada.

Ainda que o acesso à educação, aprendizagem e ao desenvolvimento cognitivo sejam os principais pilares para despertar a consciência humana em todos os âmbitos, entendo que conectar a expectativa do desenvolvimento da literacia digital com o caminho da educação informal é uma noção importante, pois dilui a expectativa errática de esperar por um aparelho de educação nacional.

O conceito de autonomia se revela ainda mais potente porque contribui para um olhar menos estereotipado acerca da literacia digital e classes sociais. É importante destacar que literacia digital não significa ter acesso a traquitanas tecnológicas de última geração. Levando em consideração a noção de autonomia, a forma com a qual interagimos com o mundo digital está ancorada em um comportamento de uso, em como exploramos e criamos vínculos com a linguagem, me explico: podemos escolher gastar as nossas horas na internet em redes sociais ou aprendendo um instrumento em videos tutoriais.

Por fim, ao reconhecer o conceito de literacia digital torna-se visível a tarefa, responsabilidade ( e o dever, eu diria) que grandes poderes e empresas da era digital (Google, Uber, Facebook, Microsoft, Youtube) têm com a instrução e compreensão do universo digital. Se já é sabido que idosos tendem a compartilhar notícias falsas , é nosso dever instruir essa população digitalmente ativa sobre como relacionar-se com as notícias online. E mais, para isso precisamos cobrar essas empresas de suas responsabilidades nesse sentido, criar leis e perseguir de forma mais intencional o empoderamento e não apequenamento dos indivíduos no ciberespaço.

01 Conceito como metodologia — Pesquisando sobre metodologias qualitativas para estudos de afeto, encontrei esse artigo de Jan Slaby e outros professores de filosofia da Freie Universität Berlim, na Alemanha. A teoria de Slaby compreende a construção de conceitos como metodologia, uma vez que a prática conceitual é inevitavelmente social. A ideia dos conceitos como metodologia é entender que uma vez que os conceitos são socialmente utilizados — por exemplo, quando usamos uma palavra ou um jargão e ela é reconhecida por pessoas de diferentes contextos -, eles contam como uma metodologia de trabalho, com suas particularidades e normativas.

02 Autonomia e aprendizagem — Houve um notável crescimento do interesse na teoria e prática da autonomia no ensino e aprendizagem de idiomas nos últimos anos. Phil Benson é um dos grandes teóricos do campo, e apresenta estudos impressionantes sobre o papel da autonomia na política e na reforma da educação global. Para ele, o conceito de “autonomia é sobre pessoas que têm mais controle sobre suas vidas — individual e coletivamente. Trata-se de pessoas que têm mais controle sobre seu aprendizado nas salas de aula e fora delas, e autonomia no aprendizado de idiomas ao saberem exatamente como querem aprender e quais didáticas se adequam a seus propósitos. Aqui um Podcast com ele falando sobre o assunto e aqui sobre seu caminho acadêmico.

03 Inteligência Artificial — De novo compartilho um conteúdo da jornalista @_KarenHao, jornalista do MIT que escreve para a Technology Review, e para mim é uma das melhores referências sobre AI. Recentemente ela fez uma palestra explicando de maneira super fácil e clara o que é e em que pé está a discussão da inteligência artificial.

Um dia na vida de uma mulher e de um homem — A partir do questionário American Time Use Survey, o estatístico americano Nathan Yau simulou a rotina típica de um dia de trabalho de homens e mulheres, respectivamente. A visualização baseada em dados destaca as discrepâncias entre o que homens e mulheres fazem ao longo do dia em diferentes áreas de suas vidas, como trabalho, lazer, educação dos filhos e casa.

Pais que amamentam — Foi desenvolvido no Japão um gadget que também permite que os homens amamentem bebês, aliviando a tensão das mães e acalmando seus filhos. O dispositivo em forma de mama, projetado por pediatras e babás, também usa um aplicativo para rastrear os feeds, o que ajuda a controlar a frequência e a quantidade consumida. No contexto da igualdade de gênero, novos modelos familiares e condições flexíveis de emprego, aumentar a independência materna e o vínculo entre pais e bebês podem satisfazer muitas necessidades.

Susan Meiselas, Mediações — A exposição da documentarista e fotógrafa norte-americana, Mediações, está imperdível e faz uma retrospectiva do trabalho da artista desde 1970 até hoje. Seu olhar diante a conflitos na América Central, a diáspora do povo curdo, streappers americanas e o mercado do sexo e também sobreviventes de abuso domésticos documenta partes da história que não costumam ser contadas. Ao propor a produção de novas perspectivas, através da criação de memórias, sua obra abarca a crítica sobre o perigo de uma só narrativa para formar nosso ponto de vista.

Contrato da Web — O mestre da internet, Tim Berners-Lee lançou um plano de ação global para salvar a web de manipulação política, notícias falsas, violações de privacidade e outras forças malignas que ameaçam mergulhar o mundo em uma “distopia digital”.

A frase da ilustração é da Fei Fei Li e o trabalho gráfico foi feito por Felipe Drummond, sócio da @bergamia , da @urubu e em versão livre você pode encontrá-lo como @caolho.

É isso,Te vejo em Dezembro.
Luiza Futuro

--

--