Neo-racionalismo

Luiza Futuro
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16 min readMar 16, 2022

As bordas do neo-racionalismo com Jean-Pierre Caron.

Jean-Pierre Caron, filósofo, músico e artista foi o convidado de um dos encontros do GAIA, Inteligência Artificial e Grupo de Artes, no Centro de Inovação da Universidade de São Paulo (USP).

Para essa reunião, ele sugeriu que discutíssemos “O que é filosofia?”, um texto do filósofo iraniano Reza Negarestani. Graças a esse texto, pude reconhecer o trabalho de Reza e, principalmente, o chamado neo-racionalismo. Conhecer o projeto, ou melhor, a plataforma cognitiva, que avança nas possibilidades de construção do conhecimento e evolução dos pensamentos, realmente me iluminou. Interessada em poder compartilhar essa possibilidade tanto filosófica quanto material, convidei Caron para apresentar algumas das bordas do Neo-racionalismo.

Aproveito essa possibilidade para inaugurar um novo formato da News From Futuro com proto-entrevistas: um convidade, três perguntas.

Sanannda Acácia

1.Tu poderia tentar sintetizar o pensamento neo-racionalista e comentar como ele influencia a concepção/compreensão do humano?

Acho que não existe realmente *um* pensamento neo-racionalista. O dito neo-racionalismo é basicamente uma etiqueta que é usada para denominar um certo conjunto de pensadores (que inclui pelo menos Ray Brassier, Reza Negarestani, Pete Wolfendale, Daniel Sacilotto e o coletivo Laboria Cuboniks) que vieram em maior ou menor grau de um subconjunto das preocupações que estavam na ordem do dia na época do Realismo Especulativo (daqui em diante, SR, de “Speculative Realism”). É claro que há descritores mais específicos do que poderia ser um neo-racionalismo além dessa genealogia inicial, mas posso entrar nisso mais facilmente revisitando a genealogia(1).

O SR teria se iniciado com a conferência na Goldsmiths, Londres, em 2007, de mesmo nome, que contava com a presença de um desses nomes, a saber, Ray Brassier, que é o tradutor para o inglês do Après la Finitude de Quentin Meillassoux, livro que teria inspirado o então “movimento”. Uso aspas aqui para me referir ao SR como movimento por ser muito debatido se o SR efetivamente se configurou como um movimento unificado(2). Mas uso a expressão aqui como uma maneira conveniente de me referir a um certo meio intelectual, mais do que a um conjunto de teses doutrinárias em comum.

Voltando ao Meillassoux, não cabe recuperar todos os argumentos deste livro aqui, mas Meillassoux propunha basicamente, contra a tendência hegemônica na filosofia continental, uma forma de realismo que sustentasse a realidade das propriedades primárias, matematizáveis. O livro propunha uma saída do que batizou como correlacionismo, que fora conceituado por Meillassoux como a ideia de que o pensamento estaria encerrado nas próprias condições, não sendo capaz de ir além do que é transcendentalmente garantido. Em outras palavras, um objeto pensado é um objeto pensado. O pensamento nunca avança além do que é descrito na filosofia kantiana como as condições transcendentais da experiência — o que produz a diferença entre o fenômeno, o que aparece a nós; e o númeno, a coisa em si, para além da correlação entre pensamento e ser. A hipótese crítica de Meillassoux é que isso foi replicado desde então em diferentes formas na história do pensamento ocidental: sejam as condições transcendentais da experiência (Kant), a tematização dos atos de consciência pelos quais os objetos são dados (Husserl), ou a linguagem pelo qual organizamos nossa experiência (Wittgenstein). Correlacionismo, portanto, é o nome que se deu à tendência hegemônica desde Kant de nos pensarmos como encerrados em nossas próprias condições de acesso ao mundo, perdendo o próprio mundo (segundo Meillassoux, “o grande Exterior”) de vista.

Tentando se livrar dos limites correlacionistas, Meillassoux tiraria as consequências de um argumento: É um fato científico que podemos datar eventos anteriores à presença de qualquer ser vivo, portanto, anteriores à realidade de quaisquer estruturas transcendentais. Este é o arque-fóssil, ou, a informação que nos chega de uma época anterior ao surgimento da vida — sobre a formação da própria Terra, por exemplo. Para Meillassoux, se esse dado é pensável, e por sua própria natureza não está contido nas condições de acesso de nenhum ser vivo, isso significaria que o Real é pensável para além da própria correlação. A partir daí, ele derivaria a capacidade da matemática de penetrar no próprio ser, com consequências modais novas e surpreendentes.

O elemento racionalista que existe na abordagem de Meillassoux foi um importante ingrediente na filosofia de Brassier, exposta inicialmente no seu livro Nihil Unbound. Neste, não é a ideia de um arché-fóssil passado mas, a ideia de uma extinção futura da humanidade, e de toda a vida, para todos os efeitos considerada em nosso horizonte científico de hoje como inevitável e a capacidade do pensamento de tematizar assim o seu próprio desaparecimento que é tomada como uma prova da independência entre os interesses do pensamento e os interesses da vida. O pensamento racional conseguiria sustentar a ideia do seu próprio desaparecimento e o livro procura rastrear as consequências desta indiferença mútua entre pensamento e mundo.

Essa argumentação foi importante na medida em que a batalha contra o correlacionismo, então prevalente envolvia tentar extrair o pensamento do círculo correlacional. E, ao fazê-lo, Brassier aprofundou a ideia do desencantamento do mundo, pois a representação conceitual não seria, portanto, dependente de um mundo pré-formatado para ela, semelhante a um reservatório de significados transcendentalmente garantidos para os vivos, mas sim um produto de um confronto com algo fundamentalmente indiferente àquilo que o confronta. O que é fundamental reter para compreender o chamado neo-racionalismo que surge depois é a ideia de autonomia do pensamento racional e sua capacidade “prometeana” (“prometeanísmo” é usado como outro nome para neo-racionalismo) para superar condições finitas, primeiro do próprio pensamento, depois, do humano, por um lado; por outro lado, a desconexão da razão e do horizonte de significados tomados como “dados” — que desvincula a razão do “razoável”, tema que iremos explorar mais tarde.

A ideia de Prometeanismo anuncia a temática pós-humana que encontra nos trabalhos de Reza Negarestani a sua forma mais desenvolvida dentro da constelação neo-racionalista. Em “O trabalho do inumano”(3), Negarestani lança o seu inumanismo racionalista, que é resultado de se sustentar duas ideias contidas na adição do prefixo “in” ao humanismo: a ideia de um não-humano, superação do humano, mas também a ideia de um “dentro” do humano, de um atravessamento “por dentro” do humano. O inumanismo então é o desenvolvimento imanente do humanismo de tal forma a superá-lo por dentro, seguindo as cadeias inferenciais que se escondem por baixo do próprio conceito de humano. De forma muito simplificada, Negarestani mobiliza um aparato de filosofia da linguagem, o inferencialismo de Robert Brandom, que identifica o significado de um conceito por suas relações inferenciais com outros conceitos. Isto quer dizer que, diferente de abordagens filosóficas mais tradicionais da semântica, a prioridade explicativa não recai sobre a referência- o objeto que recebe o nome em questão- mas sobre a determinação de conceitos pelas inferências que possibilitam e das quais eles participam, e que são inspecionáveis pelas sentenças afirmativas que podemos produzir justificadamente com estes conceitos. E essas inferências são também função das descobertas que se consegue fazer sobre o objeto do conceito. Assim, uma descoberta de uma nova característica de um determinado elemento químico, por exemplo, “ouro se dissolve em água régia” implica adição e/ou revisão das inferências anteriores de que participava o conceito daquele elemento químico (o predicado “dissolvente em água régia” agora participa das condições de uso do conceito “ouro”).

Mas mais interessante do que este papel da descoberta empírica na determinação dos conceitos é o desdobramento propriamente lógico deles. Uma das consequências mais interessantes do inferencialismo é que usamos conceitos sem saber estritamente tudo o que eles acarretam- portanto tudo o que os constitui. Se o conceito é um nódulo em uma rede de comprometimentos organizados pelas inferências das quais ele participa, podemos sempre descobrir novas inferências, o que implica em um processo ampliativo e revisável embutido no uso dos conceitos- que não é externo, mas sim constitutivo deles. Sob essa luz, o inferencialismo também costura de forma estreita as dimensões semântica e pragmática da linguagem — uma afirmação é um fazer vinculado a regras que equivale a um compromisso com aquilo que é expresso por seu conteúdo, que por sua vez resulta dos compromissos inferenciais embutidos no conteúdo de cada um de seus conceitos constitutivos. Sendo um compromisso, uma vez assumido, deve-se também assumir as consequências que isso acarreta.

Esse raciocínio é aplicado por Negarestani em “O trabalho do inumano” ao próprio conceito de humano- como um conceito-gatilho para um processo revisionista de seu significado de tal forma a levar a uma transformação do conceito de Humano. Enquanto no Brassier de 2007, o índice de autonomia da razão era ela conseguir sustentar de forma consequente um mundo em que ela própria desapareceria, como vimos, desvinculando os interesses do pensamento aos do vivente, e tentar colher as condições e consequências racionais para que esta tese seja sustentada; no Negarestani de 2014 não é a extinção, mas a transformação do humano pelo trabalho do conceito que é o índice de autonomia da razão. Uma ideia que é o germe para a preocupação de Negarestani com a inteligência artificial geral, como uma maneira de filosoficamente analisar a composição cognitiva do humano, que aparece de forma mais evidente no seu livro Intelligence and Spirit de 2018.

Em um certo sentido a problemática muda de 2007 para cá também por não se tratar mais de garantir uma forma de realismo, mas de trabalhar imanentemente os processos próprios à racionalidade. Neste momento também há uma recuperação de uma forma de correlacionismo, mas não um correlacionismo ontológico, e sim epistêmico — isto é, o processo de conhecimento depende do aparelho cognitivo: não é negando o papel das mediações no conhecimento do exterior que se ganha tração sobre mundo, mas pelo paciente desvelamento das mediações que são constitutivas do pensamento, seus limites e possibilidades. Os autores do chamado neo-racionalismo basicamente desenvolvem diferentes abordagens a esses processos imanentes que constituem a própria razão na sua trajetória de conhecimento e intelecção de seu(s) mundo(s).

Acho que dessa brevíssima exposição podemos retirar uma proto-definicão de neo-racionalismo como uma plataforma de pesquisa filosófica que tenta 1- recuperar a centralidade da razão (e não do razoável- sua versão paroquial e limitada) para as condições de inteligibilidade do pensamento em geral; 2- rastrear e sustentar as consequências mais radicais possíveis dessa centralidade para a figura do humano e para a reconstrução do mundo, de onde se retira uma consequência política do neo-racionalismo. 3- O tratamento dessa razão em termos algorítmicos, que considera a cognição como uma forma expandida de processamento computacional(4) , procurando identificar e explorar o espaço de restrições e oportunidades que produz uma economia imanente ao pensamento, ao comportamento inteligente e à capacidade representacional. Aqui encontramos uma inversão do que havíamos dito no parágrafo anterior: se a inteligência artificial comparecia em “O trabalho do inumano” como consequência e produto da autonomia (e automação) da razão, aqui a inteligência artificial, pela via do computacionalismo nos forneceria um modelo externo de agente pelo qual podemos estudar e fazer uma engenharia reversa sobre a constituição racional do ser humano- ela passa a ser o meio de estudo e não apenas o produto. Essa é a função do uso do Toy Model no livro Intelligence and spirit, de Negarestani.

As três ideias propostas acima podem ser resumidas e complementadas por essa definição proposta por Wolfendale:“Rejeitar toda intuição racional em nome da razão, para insistir que não só não há faculdade intuitiva de conhecimento racional, mas que não há compra intuitiva da própria estrutura, possibilidades e limites da razão. A razão não é o que você pensa que é. A razão não é racionalização. A razão não é razoável.” (5)

Assim o projeto neo-racionalista se relacionaria portanto não apenas com a centralidade da razão, mas sua ampliação e auto-transformacão, de tal forma que razão e razoabilidade sejam não coextensivas, mas sob alguns aspectos opostas: o razoável se coaduna com o senso comum e uma compreensão estabelecida de como lidar com os parâmetros da vida e do real; o racional, eventualmente inclui o razoável, mas ultimamente o supera e redefine, pois não está subdito a uma imagem dada, “intuitiva” das possibilidades da razão(6) , mas o processo pelo qual esta é definida é também o processo pelo qual ela é elaborada para além das coordenadas vigentes do atualmente racional.

Esta preocupação com a auto-transformacão racional do humano também aparece em projetos políticos correlatos ao surgimento do neo-racionalismo, e não é à toa que o mesmo têm pontos de interface com os trabalhos de Srnicek e Williams sobre um aceleracionismo de esquerda (“Manifesto for an Accelerationist Politics”(7)- 2013) e do coletivo feminista Laboria Cuboniks sobre o xenofeminismo (“Xenofeminism- a politics for alienation” (8)- 2015), e que continuaria a ser refletido nos trabalhos de algumas das remanescentes daquele coletivo, como a artista e escritora Patricia Reed, que tem produzido vários ensaios importantes desde então(9).

Sanannda Acácia

2.Como o neo-racionalismo compartilha uma preocupação em atender a processos não cognitivos, não conscientes e não representativos?

Retomando o gancho do final da resposta anterior, posso desenvolver em duas linhas mais ou menos divergentes uma resposta a esta pergunta.

A primeira seria simplesmente o fato de que uma abordagem da estrutura da mente em termos computacionais necessariamente teria de incluir elementos não- ou pré-conscientes que constituem e/ou condicionam as capacidades cognitivas, conscientes e representativas nos agentes racionais. O neo-racionalismo como um todo foi muito influenciado pelo filósofo norte-americano Wilfrid Sellars (embora tenha havido mais recentemente uma deriva para outras influências intelectuais), muito ativo no final dos anos 50 e ano 60, que justamente se preocupava com a partilha entre a estrutura material que condiciona a própria racionalidade e a racionalidade conceitual que é capaz de descrevê-la de volta.

Como diz o próprio Sellars, citado por Brassier, “a tarefa da ‘lógica transcendental’ é explicar o conceito de uma mente que obtém conhecimento da realidade da qual ela é uma parte. A aquisição de conhecimento por uma tal mente envolve que ela seja objeto da ação dos, ou ‘afetada’ pelos objetos que conhece.” (10) Mas, de forma mais radical, isto inclui não apenas ser afetada, mas ser constituída pelos processos materiais de que, justamente, se busca obter conhecimento.

O problema para Sellars é que você não teria como se colocar *fora* das suas próprias capacidades cognitivas para descrever seus constrangimentos pré-cognitivos ou materiais. O ponto de vista de 3ª pessoa deve ser constituído dentro dos recursos do nosso ponto de vista de 1ª pessoa. Isso é mapeável na distinção que Sellars propõe entre uma “Imagem Científica” e uma “Imagem Manifestada” do ser humano no mundo, respectivamente. A imagem manifesta corresponde de forma grosseira à autocompreensão que temos de nós mesmos enquanto indivíduos racionais e autodeterminados, e a ontologia do senso comum que acompanha esta imagem, composta de objetos molares, animados e inanimados e pessoas. A imagem científica corresponde à aglutinação das formas de descrição que a ciência produziu historicamente- culminando em uma imagem “particulada” da realidade tal como a que Sellars aborda em “Philosophy and the scientific image of man”. Uma das dificuldades que Sellars entrevê é em juntar ambas as imagens em uma “visão estereoscópica”, uma vez que nada como um indivíduo racional autodeterminado e que obedece a normas racionais de inquirição possa aparecer na imagem científica. Mas se a imagem científica demonstra ter maior poder explicativo e preditivo, parecendo, portanto, ser verdadeira, como resolver o paradoxo de que esta imagem científica que surge a reboque das atividades científicas, é ela própria o resultado de processos de pensamento que são apenas descritíveis na imagem manifesta, e para os quais a normatividade própria da razão é indispensável? Esta dificuldade deu origem a uma bifurcação entre os filósofos influenciados por Sellars- a saber, aqueles que desenvolvem a infraestrutura racional da imagem manifesta, dentre os quais conta-se Brandom e seu inferencialismo; e aqueles que desenvolvem as consequências da imagem científica, incluindo-se aí eliminativistas que advogariam a superação da imagem manifesta pela científica pela substituição do vocabulário anímico da imagem manifesta por vocabulário neurofisiológico, como Patricia e Paul Churchland.

Encontrar o ponto arquimediano entre as duas imagens é uma maneira de colocar o problema da constituição pré-cognitiva, pré-representacional e pré-consciente da cognição, representação e consciência sem dar o passo dogmático de pressupor essas condições. Estes devem ser derivadas dentro dos próprios processos cognitivos, conscientes e representacionais, mesmo que seus objetos sejam causalmente anteriores e externos a essas esferas. Em outras palavras: as capacidades cognitivas inferenciais que vemos na Imagem Manifesta teriam que ser contabilizadas pelos recursos da Imagem Científica, que por sua vez surge do arcabouço da própria Imagem Manifesta. Esta é a restrição crítica e transcendental para não pressupor dogmaticamente a constituição do mundo sem se envolver na maneira como a mente elabora esses parâmetros de constituição.

No caso particular de Brassier, e aqui posso colocar a segunda linha de resposta, houve em anos recentes um engajamento com o pensamento de extração Marxista. Embora seja discutível se o envolvimento com o marxismo ainda é pensável dentro dos limites do neoracionalismo, aqui também surge um elemento que restringiria externamente a cognição — a saber, a abstração do valor, suas restrições e impactos sobre o pensamento. As pesquisas de Brassier tentam há vários anos coadunar uma abordagem Sellarsiana da representação às abordagens Marxistas, complexificando os elementos constitutivos da razão para abranger as abstrações reais que são produtos históricos de uma socialidade capitalista. Então além de condições materiais da cognição individual as condições materiais encarnadas na prática social aparecem como elementos que constrangem e determinam a razão, mas que ao mesmo tempo são descritíveis retroativamente por esta dentro de certos enquadramentos historicamente determinados — de forma análoga à descrição retroativa, dentro da imagem manifesta, dos processos a-subjetivos que dão origem à razão, no interior da imagem científica, pelos recursos da própria razão.

Sanannda Acácia

3.Na tua opinião, qual o impacto da inteligência artificial e da neurociência na evolução do pensamento neo-racionalista?

Acho que esta questão foi parcialmente respondida nas respostas anteriores, mas talvez valha desenvolver. Ambas, a pesquisa em Inteligência Artificial e em neurociência, são essenciais para os projetos neo-racionalistas. Já tocamos em duas maneiras em que a IA comparece por exemplo no trabalho de Reza Negarestani: 1. Como resultado da artificialização do humano sob o empuxo da elaboração racional de seu conceito. 2. Como peça nesta elaboração ela própria, enquanto modelo externo a nós mesmos de um agente racional, com o qual podemos testar possíveis estruturas cognitivas, não só a fim de reproduzir as nossas próprias — o que torna o agente artificial um instrumento de estudo de nós mesmos- mas de construir estruturas completamente diferentes.

Isso toca em um ponto que enfatizei pouco até aqui. Parece-me que o neo-racionalismo não apenas está interessado em descrever de forma adequada as mediações que constrangem e constituem a razão em todas as esferas ideais, materiais, sociais; mas está também interessado na ampliação dessas capacidades cognitivas. Se Marx dizia que os filósofos têm até aqui tentado entender o mundo e a tarefa seria transformá-lo, Brassier em “Concepts and objects” nos diz que a incapacidade de transformar o mundo pode estar relacionada à incapacidade de compreendê-lo. Assim, o projeto de compreensão das condições de autonomia da razão se intersectaria com o projeto de liberação desta mesma razão e de nossas capacidades para a inteligibilidade em geral, que passa pela Inteligência Artificial Geral, mas também pela pesquisa em lógica, construção de mundos (“worldmaking” conforme a expressão de Nelson Goodman), análise da socialidade capitalista, e organização política.

Por fim, a filosofia da mente e a neurociência fornecem hipóteses explicativas para essa mesma mediação entre mente e suporte material, a ser colhida pelo neo-racionalismo, muito embora este as leve para além do âmbito próprio daquelas disciplinas, aliando-se à maneira como as ciências da computação tem abordado os mesmos temas e temas relacionados. A escolha pelo funcionalismo, pelo computacionalismo, e, pelo debate com o eliminativismo (e não a adoção de sua tese positiva) delimita um âmbito específico no interior das pesquisas em neurociência que tem interessado mais ao dito neo-racionalismo do que outros âmbitos, por colocarem de forma mais aguda os problemas que o interessam a ideia de múltipla realizabilidade do mental sobre o material e, portanto, um desvinculação da mente de uma compreensão em termos de uma “substância” pensante (tese advinda do funcionalismo), a abordagem explicitamente algorítmica que busca rastrear as relações multiescalares entre as operações de nível inferior, funções de nível meso e de nível superior em termos de tipos de computações (algo que tem uma história complexa e modelos diferentes, das máquinas de Turing ao paradigma interativo em computacionalismo 11) e as hipóteses de naturalização a serem aceitas ou rejeitadas, que é provocada por os debates com eliminativismo.

No que diz respeito à adoção do funcionalismo e do computacionalismo, é importante frisar que “(i) na realidade, nem o funcionalismo nem o computacionalismo implicam um ao outro. Mas se eles são tomados como implícita ou explicitamente relacionados, isto é, se a organização funcional (com funções tendo papéis causais ou lógicos) é considerada computacional intrinsecamente ou algoritmicamente, então o resultado é funcionalismo computacional. ”

O que essa receita produz é a possibilidade de uma análise refinada e multinivelada da composição cognitiva em termos de suas múltiplas funcionalidades em seus relacionamentos variados com operações e tipos computacionais. É esta composicionalidade que é crucial para Negarestani, sem a qual não há análise da mente em termos de sua realizabilidade fora de seu “habitat natural” — o que acarreta a transformação de seu significado e de suas condições substanciais de realização. É nesse sentido que AGI é interessante para o neoracionalismo — como um modelo externo de cognição pelo qual podemos obter conhecimento de nossa própria mente, abrindo a caixa preta da experiência e motivando sua reformatação radical.

(1)Outro importante fio histórico que levou ao neoracionalismo seria a filosofia da Cybernetic Culture Research Unit em Warwick nos anos 90, que foi uma importante influência formativa tanto para Brassier quanto para Negarestani. Mas isso nos afastaria ainda mais do assunto principal.
(2)Brassier “Postscript: Speculative Autopsy” in Wolfendale, P. Object-oriented philosophy: the noumenon’s new clothes, London, Urbanomic, 2014, pp. 409–421
(3) Parte 1 , Parte 2 , em PT-BR
(4) Como apresentado neste texto de Pete Wolfendale
(5) Link
(6)Mark Fisher, em sua fase mais próxima do que depois viria a ser o neo-racionalismo, a saber o seu Racionalismo Frio de 2004:
O anômalo não é irracional.
A razão não é senso comum.
A racionalidade não revela um mundo que se encaixa no padrão de varredura do sistema operacional humano.
É por isso que Racionalistas Frios são psicóticos
Link
(7)Link
(8)Link
(9)Por exemplo, Em PT BR
(10) Sellars apud Brassier
(11)A receita que combina funcionalismo e computacionalismo é abordada em Negarestani, R. “Revolution Backwards: Functional realization and computational implementation” In: Pasquinelli, M. Alleys of your mind: augmented intelligence and its traumas. Meson Press, 2015. Pp 139–156.
Uma abordagem crítica pode ser encontrada em Daniel Sacilotto in “A thought disincarnate: what does it mean to think?”

J.-P. Caron é um filósofo e artista baseado no Rio de Janeiro. É professor adjunto da UFRJ — Universidade Federal do Rio de Janeiro e instrutor no The New Centre for Research and Practice. Ele pratica música experimental e de ruído há mais de 15 anos e gere com amigos seu próprio selo Seminal Records. Seu trabalho recente lida com os problemas de racionalidade, sensitividade à escala em vários âmbitos da experiência, e ontologia social.

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Arte:
Sanannda Acácia é uma artista brasileira de som e imagem. Nos últimos anos se apresentou com seu projeto solo Quasicrystal e Insignificanto, e em colaboração com outros artistas nos projetos MUTA, zEros e vários outros. É membro do selo de música experimental Seminal Records. Nos últimos 9 anos vem se apresentando em festivais e eventos do underground brasileiro, além de também ter colaborado com espaços de arte e coletivos como o Fosso.

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Tradução:
Janaina Felix e Mateus Potumati

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