Pós-Individualismo

Luiza Futuro
News From Futuro
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5 min readJun 1, 2020

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Ilustração: Talita Hoffmann

Na edição passada, falei sobre uma perspectiva de tempo sobre-humana, que entre tantas coisas funciona como um convite para deixarmos a poltrona macia do individualismo. Passados quinze dias, frente a uma pandemia e já em outra dimensão de tempo e espaço, eu diria que o individualismo como consumimos e conhecíamos, acabou.

A invisibilidade da guerra biológica se materializa em uma nova forma de viver. E a cada dia vamos compreendendo a soberania ecológica e a ameaça que é desestabilizar um grande sistema de relações. Como cortar a corrente de cabos embaixo do oceano, como cortar um pulso cheio de veias. Colapso.

Em um solavanco vertiginoso aterrissamos na nave mãe Terra. Um momento que evoca a única capa que faz de todos nós uma coisa só: humanos. E humanos podem conter humanidade.

Junto com a invalidez desse modo de ser, a abordagem autocentrada do design centrado no ser humano deve morrer. Uma noção auto-centrada e egoísta nos levou a almejar conveniência e a exclusividade de sermos nós mesmos, apenas. Sobretudo essa abordagem / bordão limitou as nossas possibilidades de pensar soluções que compreendessem a nossa relação existencial com a nossa primeira (e única) casa, a Terra. Na falta de um olhar sistêmico e de atenção para a interdependência das relações, observamos uma profusão de oportunidades que levam ao engajamento individual, mas também ao isolamento e ao ensimesmamento.

Durante os dias 19, 20, 21 o encontro “I am Internet Weekend” aconteceu (online, e foi glorioso). Seguindo pelo manifesto e temática “Estranheza das Interdependências” a cooperação, solidariedade, pluralidade fizeram parte de todas as conversas. Em meio ao extrativismo de dados de sistemas, ao crescimento de vigilância e a uma onda conservadora, como pensar novas formas de monetizar dados, de desenvolver privacidade e de criar soluções que transformem sociedade e sua pluralidade quando pensamos na internet e na criação de promessas digitais?

Destaco o manifesto (feito junto com outros designers) sobre os princípios do design para a sociedade, apresentado pela Sarah da If, um estúdio de design.

Em tempos distópicos, fica mais urgente pensar em utopias. Elas fazem mais sentido. Ficou mais fácil pensar em todo mundo, enxergar o Irã ao lado dos Estados Unidos, a China da Itália, conectar as medicinas do oriente e ocidente. Mais próximos do que afastados — talvez menos “globalizados” — fica mais fácil entender o impacto do nosso corpo, dentro e fora de casa: de nós mesmos dentro do coletivo. Essa coletividade que resulta da maior crise já enfrentada por nossa geração “é diferente de tudo que já vimos, é uma outra coisa, uma coletividade que ainda não conhecemos” disse minha amiga e também pesquisadora Luciana Minami em uma conversa recente, e eu concordo.

Diante da impossibilidade de vivermos sós ou estabelecermos fronteiras entre, emergiu uma força lúcida que se chama solidariedade. Não é simples como disseram na escola católica, nem farta como um pasto verde na fazenda que cria gados. É dolorido como nunca foi. Anormal como nunca tinha sido. Mas não se pode negar que o coronavírus conseguiu conectar toda a humanidade, e como bem dito no último texto do sociólogo Bruno Latour : “Contra a globalização, uma globalização ainda maior: se o objetivo é conectar milhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo!”. Neste ensaio, ele comenta sobre a importância de cada um de nós imaginarmos “gestos barreira”, não apenas contra o vírus, mas contra cada elemento do modo de produção que não queremos que seja continuado.

Diante de um diário re-aprender é preciso deixar iluminar a nossa imaginação com novas possibilidades, rotinas e modos de fazer que julgamos melhores. O autor propõe algumas perguntas para refletir, e eu recomendo que vocês se perguntem.

Com criatividade, indignação e utopia poderemos experimentar a criação desse novo lugar, que precisa de bastante espaço para nascer.

01 blogjets

Inspirado pelo termo criado pelo escritor de ficção Bruce Sterling, “spime” junção de “space and time” (espaço e tempo), o centro de comunicação da universidade do sul da Califórnia cunhou o termo “blogjet”. O termo se atenta a participação dos “objetos” e das “coisas”, e em como se tornam mais vivos ou protagonistas de nossa vida de forma geral. Como os objetos acabam por em um dado momento fazer parte do que chamamos de “coletivo”, o conceito surge totalmente inspirado na Internet das Coisas, mas acho que traz uma reflexão lúcida em um momento no qual nós, como consumidores, olhamos mais atentos para todas as coisas que estão a nossa volta.

Aqui nesse manifesto, você pode entender melhor sobre a origem do conceito.

02 Turkers

Você sabe quem são os Turkers?O artista @bruno_moreschi em parceria com a o aarea o Grupo de Experiências Críticas em Infraestruturas Digitais (GECID) criou o projeto “Exch w/ Turkers”, um website que evidencia o papel de humanos na construção da Inteligências Artificiais e seu contexto de trabalho.

O artista criou um website de bate papo onde é possível conversar e trocar experiências com pessoas do mundo inteiro que são contratadas para fazer Human Intelligence Tasks (HITs), pequenas tarefas que são utilizadas para construir os bancos de dados das IAs. Atualmente, cerca de 500.000 pessoas realizam esse tipo de trabalho digital na plataforma Amazon Mechanical Turk (MTurk), mantida pela empresa norte-americana Amazon. Estima-se que 75% desses trabalhadores são dos EUA, 16% da Índia e os 9% restantes de outros países e que de 2 mil a 5 mil trabalhadores podem ser encontrados na plataforma a qualquer momento. Um projeto necessário em tempos que o modelo capitalista entra em colapso e questionamos os louros do modelo da gig economy.

03 Multitude

Tempo de evitar multidão, tempo de encarnar a multitude.

O conceito pode ser estudado através de inúmeros prismas, mas o que me chama mais a atenção é como o termo esclarece a subjetividade que emerge da singularidade.

Sinta esse conceito nesse projeto incrível chamado Human.Online

We are Safe Here — Projeto emocionante do artista iraniano, Mohsen, que por conta da pandemia está de quarentena em Barcelona.

Otter.AI — Para os pesquisadores, jornalistas e tantos outros profissionais, aqui um aplicativo que usa IA para taggear os principais assuntos de uma conversa, entrevista, reunião.

Anatomy of AI — Na mesma crítica que trago ao mencionar os Turkers, trago este mapa que mostra todo o processo, que não é invisível, e que faz parte do desenvolvimento da Inteligência Artificial.

Essa newsletter foi ilustrada pela designer e artista Talita Hoffmann

Essa newsletter foi traduzida por Janaina Felix

Essa newsletter foi revisada por Maria Joana Avellar

Essa newsletter tem uma playlist.

#fiquememcasa
Se cuidem

Até a próxima,

Luiza Futuro

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