Permaneça Humano

Luiza Futuro
News From Futuro
Published in
6 min readJan 22, 2020

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A ilustração de Ingrid Kita

Dezembro, bem sagitariano, coloca tudo para fora ao descortinar a seta do tempo. Uma sensação orgânica ainda que desencontrada, de olhar para trás e de se virar em direção ao novo. E, ao imaginar a próxima década, fica difícil resistir a força aguda dos acontecimentos distópicos que já alcançaram inúmeras projeções e, de forma ainda mais prejudicial, debilitam nossa capacidade de sonhar, como comentei na edição de Outubro. Por outro lado, eu bem leonina, me sinto confiante da rede invisível que forma nossa inteligência coletiva, essa que nos fez cooperar (e não competir) e sobreviver até aqui. Por isso, num exercício de projeção megalomaníaca e afetiva, eu gostaria de pensar que no início dessa nova década todos nós formaremos embarcação rumo a humanidade.

Seguindo no movimento de cooperação, compartilho o ponto de vista de Douglas RushKoff, professor e teórico americano do campo recente, mas urgente, denominado de “humanidades digitais”. Em Janeiro deste ano, Douglas lançou Team Human ou Equipe Humana, um livro manifesto que se vale da metáfora do funcionamento de uma equipe para explicar o papel da humanidade frente às ameaças da sociedade tecnocrata, e mais precisamente das falhas e ambições que colocamos no desenvolvimento das tecnologias massivamente adotadas.

Como um reflexo de nossa própria criação, nos deparamos com a alienação da noção do coletivo em detrimento da competitividade individual. Muitas vezes, com mais intimidade com plataformas sociais do que ao olhar humano. Com pouco discernimento para diferenciar alegrias públicas de privadas, cedemos nossas vivência íntima por influência social. Estamos comunicando, na maioria das vezes competindo por um lugar ao sol na hierarquia virtual, mas não cooperando.

Ainda pensando em nossa capacidade de evolução, parece evidente que para recuperar um estado de consciência e inteligência coletiva, é imprescindível o espírito de cooperação. Somente mediante a uma mobilização global e destemida da complexidade poderemos ser capazes de redesenhar os caminhos da civilização humana e, principalmente, do nosso lar, mais conhecido como planeta Terra.

É urgente nos empenharmos em permanecer humanos. E, nesse caminho, precisamos nos dedicar em nutrir o melhor de nós mesmos como espécie, para que nossa cooperação redesenhe estruturas sociais ainda mais complexas, porém ainda preocupadas com a permanência humana. E se esse desafio parecer longínquo: é no agora que precisamos construir melhores possibilidades existenciais. Para acabar com a epidemia de suicídio que tem como vítimas principalmente jovens do Brasil e do mundo. Precisamos nos encontrar, conversar, sonhar e agir rápido. Parar de apenas mensurar os impactos do desenvolvimento pouco intencionado da tecnologia e reagir perante aos números e as inúmeras ameaças que já se materializam na precarização de nossas relações. Estamos mais solitários, ansiosos, polarizados, com pouca paciência para nós mesmos, olhando mais para telas do que para os olhos de outras pessoas.

O mais perigoso seria não entender a emergência dessas ameaças. Seria não só uma má ideia como uma forma de perpetuar o projeto anti-humano que juntos estamos estabelecendo. E a fundação para transformar o cenário crítico já estabelecido é puramente social e, nesse caso, depende de nossa forma de agir em rede. E nós, que temos o privilégio de acesso e literacia para utilizar as tecnologias e principalmente a internet, temos mais responsabilidade. Porque somos capazes de entender que ao nutrir nossas relações sociais, profissionais, ao compartilhar nosso amor por nossos amores, nossa conexão com coisas que amamos, nossa admiração, intimidade, felicidade e infelicidade, estamos alimentando redes de dados (de empresas privadas) com o mais puro capital humano.

Nós, que temos o privilégio de facilmente acessar e experimentar as tecnologias emergentes, não podemos mais ser ingênuos e não compreender as redes sociais como verdadeiras plataformas de processamento de nossos dados. Nós, que temos capacidade de criar na internet, temos que desenvolver uma consciência que, na forma como usamos a internet, pavimenta diretamente a autonomia de algoritmos que estão se especializando para fazerem “melhores” decisões para cada um de nós. É dizer que, em uma era onde o aumento de capital está na análise e mercantilização dos dados, nós estamos cotidianamente instruindo marcas e governos a desenvolver uma comunicação instantaneamente efetiva (mais conhecidas como memes). São notícias virais que têm a habilidade atacar nossa imunidade social, uma comunicação que gera conexões automáticas: uma mistura de fast-food e fofoca que é muito tentadora aos impulsos mais primitivos e automáticos de todos nós, humanos.

Os desafios que tangem nossa relação e o uso que fazemos da tecnologia se transpõem globalmente. Porém, tratando-se da América Latina, a região mais desigual do mundo, e ainda do Brasil, é brutal o hiato que nos deparamos: enquanto as máquinas estão aprendendo à galope, nós, em meio a crise de educação brasileira, atravessamos um dos piores cenário da educação (vide os números do PISA, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Nós precisamos aprender muito mais. Num projeto pró humanidade, o foco não deve estar no aprendizado das máquinas, e sim no aprendizado humano. Porque nosso desafio de sobrevivência é de natureza humana. De habilidades sócio, químicas e emocionais.

E, finalmente, se sobrar um espaço na nuvem dessa lista de desejos, eu queria que ano que vem a gente saísse mais para tomar aquele café, que tirássemos menos foto, menos grupos no Whatsapp, que migrássemos do Whatsapp para o Telegram, que não sucumbíssemos a estandardização dos métodos ágeis para todos os desafios, pegássemos gosto para pensar e executar ao longo prazo, tivéssemos menos problema com tendinite e outros sintomas do uso exacerbado do celular, que conseguíssemos voltar a dormir com despertador e fôssemos mais para a rua se manifestar e conversar uma hora inteirinha sem que nenhuma tela interferisse.

01 Robô — A peça de Karel Capek, em 1921, denominada R.U.R ( que significa Universal Robots de Rossum) marca o primeiro uso da palavra “robô” para descrever uma pessoa artificial. Para criar a palavra o autor se inspirou no termo em tcheco que significava “trabalho forçado”. A palavra robô entrou para o idioma inglês dois anos depois, em 1923.

02 Autopoética — Um conceito que compreende a qualidade de um sistema ser capaz de se auto-reproduzir e se manter por si mesmo. Me parece que o conceito, proposto pelos biólogos chilenos Humberto Maturana y Francisco Varela em 1973, serve como uma metáfora para esse momento preciso, no qual os seres vivos perpetuam condições autônomas para continuar sua longevidade.

Everything Manifesto — Um experimento mental para os próximos bilhões de segundos. O manifesto a seguir é uma introdução à ‘A estranheza das interdependências’, o tema da pesquisa para a próxima edição do IAM Weekend (19 a 21 de março de 2020 em Barcelona), se concentrará em como a organização e os cidadãos podem abordar as implicações estranhas do design, das mitologias e do uso da Internet e das tecnologias digitais na emergência ambiental.

Lidando com viés e Inteligência Artificial — Ótimo texto sobre viés algorítmico, #DaphneKoller, fundadora do Coursera, destaca a conexão entre a criação dos algoritmos e contexto no qual serão aplicados. Ela enfatiza que o problema realmente surge quando usamos um algoritmo em um contexto diferente do qual ele foi criado, ou seja, com uma amostra que não fez parte da composição de seu conjunto de dados para começar.

A ilustração é de Ingrid Kita, ela é formada em desenho industrial pela PUC-Rio, desenvolve esculturas e vestíveis em sua investigação sobre o corpo — objeto mole e inflado que nos permite acessar o que não pode ser visto. Faz uso do desenho como ferramenta para materializar, criar e existir. É isso,
Obrigada por me apoiar nesse projeto, te vejo em 2020!

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