Las Chicas del Cable

As telefonistas feministas dos anos 20.

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
7 min readApr 10, 2018

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“A vida não era fácil para ninguém, muito menos para uma mulher. Não éramos livres mas sonhávamos com a liberdade.”

Las Chicas del Cable vai te conquistar logo no início com o discurso feminista da narradora, mas fique sabendo que a primeira temporada se trata de um novelão espanhol que não banca o feminismo a série toda repetindo estereótipos e clichês machistas. Ainda assim as personagens são interessantes, é uma boa oportunidade para relembrar a importância que foi a luta por direitos iguais protagonizada por mulheres que vieram antes da gente e sim, na segunda temporada as coisas melhoram bastante.

Sara Millán

A série original da Netflix, sua primeira produção espanhola, começa no fim dos anos 20 em Madri quando a protagonista Alba Romero vai presa por engano pela segunda vez. A primeira prisão aconteceu por conta de uma confusão na estação de trem de Madri para onde Alba e Francisco, seu namorado adolescente, tinham acabado fugir. Os dois se perderam no meio do caos e nunca mais se viram. Alba ficou na cadeia sem ter a quem recorrer e sem perspectiva de sair dali, até que foi resgatada por Victoria, dona de um bordel, que a acolheu e ofereceu trabalho, passando a ser sua figura materna. Tá sentindo o drama chegar?

Eis que quando Alba é presa pela segunda vez, com receio de viver novamente os horrores de ser uma mulher em cárcere, cede às ameaças do corrupto inspetor Beltrán e aceita a proposta de furtar uma grande companhia telefônica em troca da sua liberdade. Sem pestanejar, se apropria da identidade de uma das candidatas para a seleção de telefonista e consegue uma vaga na companhia após seduzir um dos diretores da empresa, Carlos Cifuentes. O plano vai por água abaixo quando o outro diretor se apresenta ao grupo das novas telefonistas: Francisco Gómez, seu namorado perdido que não a via há mais de 10 anos (alerta novelão!!!). A partir daí o drama está posto e os mal-entendidos não vão parar de acontecer.

Alba Romero / Lidia Aguilar

Alba, agora Lidia Aguilar, mantém o passado misterioso e não se abre para ninguém. Acredita que a única forma de conseguir o que quer é seguindo sozinha e tropeça entre uma mentira e outra. Esse caminho solitário e infeliz é reforçado pelo triângulo amoroso entre ela, Don Francisco e Don Carlos e suavizado pelas amizades das companheiras de trabalho, que entre idas e vindas, se tornam um grupo de apoio e cumplicidade.

"Pensar ou se deixar levar, esse é sempre o dilema"

As três mulheres telefonistas e coadjuvantes que também têm suas narrativas desenroladas são:

Ángeles Vidal

Ángeles Vidal, a telefonista mais experiente, trabalha há três anos na empresa junto com o marido que acabou de ser promovido e passa a exigir que a esposa se afaste do emprego já que agora terá renda suficiente para bancar a família, deixando Ángeles limitada à vida doméstica. Após descobrir o caso extraconjugal do marido fica refém de um relacionamento abusivo ao se deparar com a impossibilidade legal do divórcio. Dividida entre a imposição do marido e o amor ao trabalho, Ángeles é, de longe, a personagem mais vida real de toda a série.

Carlota Rodriguez de Senillosa

Carlota Rodriguez de Senillosa, filha de um ex coronel, recusa a riqueza da família para lutar pela sua liberdade de escolha, trabalhando dignamente como telefonista. Não esconde a franqueza, afronta os limites impostos às mulheres, bebe, se diverte e discute política de igual para igual. Se aproxima de Sara Millán — supervisora das telefonistas que fora do trabalho é militante e líder sufragista e a revela um outro modo de se expressar, política e sexualmente falando. Carlota é a personagem mais ativista, inspiradora e acende a chama da luta feminista em quem a assiste.

“Sabe qual é o pior inimigo das mulheres, Marga? A submissão.”

Marga Suaréz

Marga Suaréz, o alívio cômico da série, é a jovem insegura que veio do interior a mando da avó em busca de melhores oportunidades. Conhece a função de telefonista desde pequena mas não sabe nada sobre as malícias da vida adulta. Se apaixona por um dos funcionários da companhia que é atrapalhado tanto quanto ela. Fala tão rápido que mesmo quem é pós graduada em Gilmore Girls não consegue acompanhar.

Carolina Moreno

Além delas, vale lembrar também de Carolina Moreno, secretária de Don Francisco e amante do marido de Ángeles que desde o início desconfia de Alba/Lídia. Os roteiristas pecam ao construir uma personagem unilateral, (mal) escrita apenas para prestar o desserviço de afirmar a disputa amarga entre as mulheres, tendo todo o mau caráter descarregado em uma pessoa só, quando na verdade muito se aproveitaria mostrando o seu lado da história e suas motivações.

Elisa Cifuentes

Outro clichê é Elisa Cifuentes, esposa de Don Francisco e irmã de Carlos Cifuentes. É a típica esposa rica, louca e ciumenta. Vive trancafiada em casa, entediada com a vida e obcecada pela atenção do marido. É medicada para que “mantenha o controle” e é constantemente menosprezada pela família. Sua existência é reduzida a um "impecílio" para o romance entre Alba/Lídia e Don Francisco acontecer.

Seguindo o movimento das sufragistas originado em Londres no início do século XX, as questões sociais das mulheres dessa época são levantadas o tempo todo na primeira temporada. A luta pelo direito ao divórcio, por oportunidades iguais no trabalho e recusa ao patriarcado são ofuscadas pelo dramalhão entre o triângulo amoroso da série. Infelizmente, Las Chicas del Cable destaca uma trama que reforça o estereótipo da mulher mentirosa, sedutora e desleal que não dá conta de ser quem se é — como se fosse simples assumir quem se é quando se tem que ser o que o patriarcado quer. Os homens, entre um drama amoroso e outro, sempre estão tratando de negócios, enquanto as mulheres vivem apenas para esses conflitos amorosos. Passa por pouco no Teste de Bechdel, que sugere assistir a filmes/séries com pelo menos duas mulheres com nome (sim), que conversem entre si (sim) sobre outra coisa que não seja homens (passou raspando). É uma ótima oportunidade para se trabalhar o olhar crítico em cima de personagens fortes criadas a partir de estereótipos machistas.

Na primeira temporada a série se apoia no discurso feminista sem verdadeiramente incorporá-lo e usa o hype do tema para conquistar o espectador. Já na segunda, a série se redime fortalecendo o laço entre as mulheres, tornando-as mais independentes e confiantes. Personagens como Carolina, Elisa e Sara, que antes não tinham uma narrativa tão interessante, crescem revelando as camadas apagadas pela horizontalidade dos primeiros oito episódios. Alba/Lídia tem seus dramas amorosos amenizados dando espaço para assuntos relacionados ao trabalho e servindo de apoio firme e sensato para suas amigas. Carlota transita por caminhos jamais imaginados no início da série, discutindo poliamor, identidade de gênero e liberdade de expressão. Marga garante o lado humorado da série, mas amadurece e não tem mais medo de se posicionar — um crescimento que dá orgulho de ver. Ángeles se transforma diante dos acontecimentos do seu núcleo e ganha uma dinâmica bastante inspiradora que guia a segunda temporada toda.

Las Chicas del Cable é uma série dessas que dá vontade sim de maratonar. São oito episódios por temporada com duração média de 50 minutos cada. Apesar de ser dirigida exclusivamente por homens, a série tem forte presença feminina na criação e na equipe de roteiristas. A direção de arte transita sutilmente pelo século XXI e te leva à Madri dos anos 20 com vestidos, penteados, acessórios da época e batons de cores vibrantes. A trilha sonora moderninha, lamentavelmente enjoativa, nos faz lembrar que os temas abordados ainda são pertinentes e atuais.

Quem cresceu assistindo A Usurpadora, Maria do Bairro e outros novelões mexicanos não vai se espantar com a capacidade dos personagens se enrolarem tanto. Ouvir o espanhol é encantador e provavelmente vai fazer com que você queira sair hablando con los demás, ou ao menos usar expressões como “Cállate” e “diga-me, carinho” durante uma conversa ou outra com os amigos. Dá tempo de assistir as duas primeiras temporadas e esperar chegar a terceira — que já está sendo filmada e vem ainda esse ano. Bota o batonzão e se joga!

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Lígia Maciel Ferraz
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Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes