My Happy Family: na Geórgia ou no Brasil, as mulheres estão cansadas

Filme da Netflix sobre uma mulher georgiana é tão familiar que poderia ser brasileira.

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
6 min readAug 13, 2018

--

My Happy Family

Explorando o catálogo infinito da Netflix, escolhi um filme que me chamou a atenção pelo país: Geórgia. Fiquei interessada em saber como vivem os georgianos, o quão diferente são de nós, quais são seus costumes, valores e comportamentos. Pra minha surpresa descobri que a Geórgia pode até ser um país que a gente mal sabe onde fica, que pouco ouve falar, ter um idioma que nossos ouvidos não estão acostumados e um alfabeto que à primeira vista é indecifrável, mas tem muito em comum com o Brasil, principalmente quando fazemos um recorte da família classe média branca e heterossexual.

Co-dirigido por Nana Ekvtimishvili (também roteirista) e Simon Groß, o filme faz a gente se identificar bastante com as dinâmicas familiares e refletir sobre a importância de quebrar o ciclo vicioso da imposição patriarcal. Olhando o nome do filme, My Happy Family, parece mesmo se tratar de uma história sobre uma família feliz, mas já nas primeiras cenas se percebe a ironia do título.

No dia do seu aniversário, a protagonista Manana (Ia Shugliashvili) diz que não quer festa e nem comemorar. Sua mãe responde que já convidou as pessoas e ainda pede para ela passar no mercado para ter o que servir aos convidados. Manana se queixa com seu marido dizendo que não está no clima de festejar, ao que ele responde: "não comemore então, faça o que você quiser, ninguém está te impedindo". Até aí tudo bem.

Quando chega em casa do trabalho, Manana não se surpreende ao se deparar com várias pessoas festejando: elas bebem, comem, riem e cantam músicas de parabéns. Outros parentes chegam, o irmão, a cunhada, os filhos adolescentes, as crianças. Não há dúvidas de que ela se incomoda com o barulho, com a quantidade excessiva de pessoas que ela nem mesmo convidou. Se retira da sala e logo em seguida seu marido, não respeitando o próprio conselho dado, a recrimina por fazer a desfeita de não estar presente na festa de seu próprio aniversário. Aniversário esse que ela nunca pediu pra ter, pelo contrário.

No dia seguinte, ao ouvir de uma de suas alunas que havia acabado de se separar, Manana decide também ir embora de casa deixando pra trás o marido, seus dois filhos crescidos e os pais já idosos com quem compartilhava o mesmo teto. A família, espantada ao vê-la fazendo as malas, quer explicações. Perguntam constantemente se alguém a machucou, estão preocupados com o que os outros irão pensar, com o que devem dizer aos vizinhos quando forem questionados.

Sua mãe é do tipo que reclama das atitudes dos outros mas continua fazendo tudo exatamente igual para que tudo continue exatamente igual. Ela ataca a própria filha acusando-a de não respeitar a família e imediatamente sai em defesa do marido dizendo que ele não rouba, não é criminoso, bebe moderadamente e não é viciado em drogas; pergunta "O que mais você quer?" e continua: "Ele ama seus filhos, nunca levantou a mão pra você. Você tem tudo e não aprecia nada". O que mais você quer, Manana?

Manana e o marido Soso

Manana é uma mulher cansada que não aguenta mais ter sua vontade desprezada dentro do ambiente familiar. Chegam a fazer uma reunião com outros parentes para tentar convencê-la a voltar para casa e não perdem uma oportunidade de elevar a moral do marido justificando ser um homem bom que não merece ser abandonado. Ninguém a apoia verdadeiramente, vivem em um clima passivo-agressivo, acham que é provisório e que ela não sabe o que está fazendo. Seu irmão — o primogênito, macho alfa, exemplo de toda a família — se decepciona ao saber que ela agora anda de transporte público, mora em um apartamento bem mais simples, em um bairro que maldosamente chama de "buraco". Julga todas as suas escolhas, critica todas as suas ações, mas sempre com a melhor das intenções, é claro.

Manana tem renda própria, é inteligente, tem discernimento, é plenamente capaz de se virar sozinha. Ainda assim, tem sua decisão contrariada o tempo todo. Ninguém é capaz de enxergar um palmo na frente do nariz e se perguntar, se por acaso, faz parte do problema. Para todos, ela é quem está criando o problema ao romper com as estruturas impostas, ao simplesmente sair de casa porque não aguenta mais, porque está cansada. Manana não quer guerra com ninguém, encara a mudança de forma pacífica, faz sem discussão nem conflitos, não tem mais energia para brigar. Quer ficar só, fazer as coisas à sua maneira, ao seu tempo. Quer decidir sobre a própria rotina, seguir o próprio caminho. Quer paz, sossego, voltar a cantar e tocar violão, dormir de roupa no sofá, jantar bolo, beber café no silêncio da manhã recebendo o vento fresco da rua. E quem não quer, não é mesmo?

Manana na sua nova casa

Ao que me parece, assim como no Brasil, ser mulher na Geórgia é ter sua vontade e seus desejos oprimidos o tempo todo. O que já está determinado pela sociedade não pode ser contrariado e deve ter suas expectativas atendidas. O lugar da mulher é na família, dentro de casa, cuidando do ambiente doméstico. Se trabalha fora, que faça jornada tripla; se quer estudar, que arranje tempo de cozinhar e lavar a louça. O lugar das mais jovens é procurar um marido, e assim que se casar, engravidar. A filha de Manana, de 20 e poucos anos, é casada há 1, se preocupa que ainda não engravidou. Mais tarde, após um problema no relacionamento, vai se culpar por ainda não ter tido filhos. “Se eu já tivesse engravidado nada disso teria acontecido”.

Manana acolhendo sua filha Nino

Os homens, no Brasil ou na Georgia, continuam se impondo sobre a vida das mulheres. Decidem sem o consentimento destas o que é melhor para elas, questionam suas decisões baseado no quanto serão prejudicados, permanecem fazendo o que bem entendem, mesmo quando às escondidas, pois sabem que são facilmente perdoados e não sofrem as mesmas represálias que as mulheres. O privilégio masculino tem o poder de sugar a energia de qualquer mulher, que dirá das que compartilham o mesmo teto. Haja paciência pra tanta encheção de saco, tanto pitaco sem ser solicitado, tanta cobrança sem comprometimento, tanta imposição sem bom senso.

O que Manana quer é o que todas as mulheres querem: ter suas opiniões e decisões respeitadas, liberdade para ocupar novos espaços e que sejam deixadas em paz. Olho para Manana com uma empatia imensa, entendo seu cansaço, suas razões para querer jogar a toalha. Ela não precisa nem dizer explicitamente suas motivações, só não enxerga quem não quer. Vem cá Manana, puxa uma cadeira, senta aqui, vamos tomar um café, nós brasileiras temos tanto em comum.

Uma mulher sossegada não quer guerra com ninguém

Esse filme faz parte do meu desafio para o #52filmsbywomen.
Conheça a proposta de assistir a pelo menos um filme por semana que seja dirigido por mulher acessando o site Women in Film e acompanhando a hashtag no twitter.

--

--

Lígia Maciel Ferraz
News From Home

Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes