O casal do Centro de Floripa

Ou: justificativas para continuar observando os outros

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
6 min readAug 27, 2018

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Photo by Ryoji Iwata on Unsplash

A primeira vez que eu os vi foi em dia de verão quando entrei numa escola de idiomas no Centro de Floripa para pedir informação. O casal já estava na salinha de espera. Deviam ter uns 40 anos, ela branca, de cabelos pretos grossos na altura dos ombros, de calça jeans, tênis e uma camisa estampada; ele alto, grande, loiro, rosto redondo, branco desses que fica com a pele rosada aos primeiros sinais de calor, usava tênis, bermuda de sarja com bolsos e uma camiseta branca.

Enquanto eu esperava ser atendida observava os dois conversarem com a recepcionista. Ela, de pé, falava alto, tinha jeitos de mulher dominante; ele sentado, com as pernas abertas, tinha os cotovelos apoiados na parte de dentro das coxas, braços estendidos em direção ao chão e a cabeça suspensa e derrotada; às vezes passava as costas da mão na testa suplicando silenciosamente por um ventinho enquanto seu rosto ficava cada vez mais rosado. Eu também estava com calor. Ele falou alguma coisa pra ela e percebi que era gringo, falava português com sotaque. Parecia ser americano, devia ser americano. Ela começou a ficar meio alterada com a recepcionista, olhou para o cara sentado, ele respondeu algo meio que desistindo de esperar, e os dois se levantaram e foram embora. Estiquei o pescoço para a saída e vi os dois descendo as escadas apressados.

Era meio dia e, por fim, quem podia me atender entrou no intervalo. Resolvi almoçar e voltar mais tarde. Ao lado da escola ficava um dos meus restaurantes favoritos, fui ali rapidinho, comi, voltei na escola, a moça ainda não estava, acabei só pegando uns folhetos e indo embora. Voltando para a minha casa, vejo o casal da escola me ultrapassar. Ela na frente caminhando rápido, ele atrás, e eu atrás dele. Eles andavam a uma certa distância um do outro que me fazia desconfiar se eram mesmo um casal ou se estavam brigados. Ela não olhava pra trás, ele não parecia irritado, às vezes falavam algo em um tom normal; pensei que de repente só não tinham intimidade. Logo viraram a esquina e continuei reto olhando para eles até os perder de vista.

Semanas depois encontrei de novo o casal em uma área mais residencial do Centro. Eu já até tinha esquecido deles, mas quando os revi, fiquei feliz. Era início da tarde, não estava tão quente mas ainda era verão. Achei interessante que continuavam a caminhar com ares apressados, dessa vez ele na frente, ela atrás. Me pareceram impacientes, não um com o outro, mas com a cidade, com a rotina, com a burocracia, com todas as coisas que precisavam ser feitas antes de resolver algo mais importante. Andavam com uma distância maior que a de um casal comum e menor que a de desconhecidos. Chegaram a ficar lado a lado, mas era um na calçada e o outro no meio da rua. Acompanhei até onde pude, e logo nos desencontramos.

Passei a encontrá-los sempre no mesmo restaurante. Achei curiosa a coincidência, nunca os tinha visto e de repente os encontrava toda semana. Quando dava, gostava de sentar de frente pra eles, mas de longe, pra poder ver com calma. Eu não tinha um olhar julgador, embora no início desconfiasse do porquê não serem carinhosos aos modos tradicionais, um beijo, um abraço, as mãos dadas… Não sei se eram os costumes americanos, ou se ela era muito prática, também nunca tive certeza de que eram mesmo um casal, podiam ser cunhados, irmãos, vai saber. Nunca soube seus nomes e sequer fui capaz de imaginar quais poderiam ser.

Nos almoços percebi que costumavam conversar amenidades, sorriam pouco, mas quando um falava, o outro escutava, e quando o outro falava, o um escutava; me pareceu saudável. Observá-los era como escutar uma música gostosa quando se está sozinha em casa, era uma forma de me distrair sem precisar pensar em nada. Era como quando se está no ônibus e se ouve a pessoa de trás falar sobre a matéria que está estudando pra prova. Você escuta, e quando chega o seu ponto, você vai embora.

Já aconteceu de eu ver só ele na fila do buffet, olhava aflita procurando por ela até a encontrar ou mais na frente, ou já sentada. Às vezes terminávamos o almoço juntos e nos encontrávamos no caixa, ele na fila olhando as horas, ela na rua caminhando de um lado para o outro. Teve um dia que tomaram café juntos antes de irem pagar a conta, e agora pensando, deve ter sido esse o momento em que os vi mais próximos sem que houvesse uma mesa de restaurante entre os dividindo.

Gostava de perceber o tempo deles, de alguma forma eu via no casal um jeito diferente de se relacionar. Tudo bem que parecia meio frio conviver com alguém que nem sequer encosta em você em público, mas vai saber, já ouvi história de casais que estão juntos há décadas, andam de mãos dada na rua, mas entre quatro paredes são agressivos, desrespeitosos e vivem uma casamento de fachada.

Eu gostava mesmo era de observá-los na rua, sempre estavam com o mesmo tipo de roupa confortável e prática, meio anos 90; um na frente, com passos largos, o outro mais atrás no mesmo ritmo, mantendo essa distância esquisita de quem não tem interesse em se aproximar; de quem aceita que uma hora é a vez de um, outra hora do outro.

Lembrei de uma viagem que fiz com dois amigos e um deles reclamou que eu nunca andava ao lado deles na calçada. Respondi que era porque a calçada era muito estreita e um sempre precisava desviar dos postes, das pessoas, ou andar na rua… Eu preferia abrir mão da conversa e caminhar mais atrás ou mais na frente, não era nada pessoal. Fiquei pensando se o meu casal também não tinha um princípio parecido.

Eu os encontrava quase todos os dias, ou almoçávamos no mesmo restaurante, ou nos cruzávamos nas ruas do centro da cidade, às vezes na Trompowski, na Bocaiuva, ou na Gama D’Eça; éramos praticamente íntimos, e eu adorava vê-los. Me pergunto se um dia também passaram a achar coincidência que eu sempre estivesse nos mesmos lugares que eles, mas diria que não, pareciam estar ocupados demais com suas vidas para prestar atenção nos rostos ao redor. Nunca cruzamos os olhares.

Observar as distâncias do meu casal me fazia, sobretudo, perceber como eram as minhas. Quando me questionava se eles tinham problemas no relacionamento, pensava se eu demonstrava os meus em público; quando me deparava com a seriedade deles, me perguntava se sorrir demais não seria leviano; ao imaginar que talvez em casa eles fossem mais tagarelas, eu refletia sobre o significado dos meus silêncios.

Lembro de ter contado para algumas pessoas sobre o meu casal e, ao compartilhar essa minha peculiaridade de gostar de observar o outro, me senti estranha por acharem mais graça do que se identificarem. Vai ver essa mania é uma mania silenciosa, da qual não se sai assumindo por aí. Ao mesmo tempo que tenho certeza de que pessoas gostam de observar desconhecidos, fico imaginando se alguma vez eu fiz parte do casal do qual alguém assistia.

O que será que concluiu sobre mim? Talvez tenha percebido que visto sempre as mesmas roupas, estou com o cabelo meio sujo na maior parte do tempo, e que caminho devagar. Será que notou que fico constrangida com o silêncio, ou que falo sem parar para evitar isso? Descobriu que quando estou ouvindo o outro falar, eu facilmente me distraio e fico olhando pra pessoa enquanto penso em outras coisas nada a ver? Será que me julga ou só me vê como um passatempo? Será que aos olhos alheios eu sou tudo o que acredito demonstrar ser? Será que? Será que?

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Lígia Maciel Ferraz
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Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes