O Interesse Pelo Trivial em "News From Home" (1977)

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
Published in
10 min readApr 3, 2018

News From Home (1977) é o segundo documentário de Chantal Akerman. No verão de 1976 a diretora belga, com 26 anos na época, retorna à cidade de Nova York para registrar as imagens dos lugares frequentados na época em que se mudou para a América do Norte, aos 21 anos, com o objetivo de fazer filmes. É através do olhar urbano da cineasta que iremos conhecer a Nova York dos anos 70. A cidade viva mesmo nos espaços vazios e ruidosa mesmo com tanta gente em silêncio é cenário para a narração de cartas escritas pela sua mãe, Natalia (Nelly), entre 1971 e 1973, durante sua temporada na América do Norte. A filha-narradora lê durante o documentário cartas de conteúdo raso e melancólico. Sua voz é opaca, de ritmo e tom constantes, independente do assunto narrado.

No silêncio despreocupado da manhã recém nascida, becos vazios, ruas com poucos carros, caminhões circulando e alguns pedestres dão cenários para a primeira carta. Nela, Nelly inicia dizendo que recebeu a carta e deseja que Chantal escreva com frequência, mas espera que ela esteja em casa logo de qualquer forma. Pergunta também pelas novidades do trabalho e da cidade. Diz que se a filha estiver feliz em Nova York então eles também estão — mesmo que sintam saudades. É aniversário da mãe e ela se sente triste, diz que está tomando medicamentos para pressão baixa, que a comemoração do aniversário será jantar com os amigos, que a filha mais nova, Sylviane, está com gripe e pede para que Chantal escreva logo. Essa é a primeira das vinte leituras e o tema “escreva logo” aparece em absolutamente todas as cartas.

Nova York existe com a presença das pessoas nas estações e nos vagões do metrô; caminhando nas calçadas ou atravessando as ruas; dentro ou fora dos carros. Até nos espaços vazios há vida, os carros estacionados encontram o segurança fazendo a ronda e a rua deserta recebe um carro em movimento.

À primeira vista a cidade parece não ter relação com as cartas, mas a edição nos mostra o contrário. Em várias ocasiões a narração começa junto com novos planos ou com a chegada do metrô, assim como encerra em sincronia com a porta do vagão fechando. Os sons de Nova York são pontos marcantes no documentário, não só ditam o ritmo como pontuam a relevância da leitura quando sobrepostos aos trechos das cartas. A simplicidade das cenas longas frequentemente se torna mais interessante que as notícias melancólicas da mãe.

O conteúdo das cartas reflete a vida apática de quem as escreve. Sem nunca entrar em muitos detalhes, Nelly não demonstra interesse pela própria rotina, não tem sonhos nem planos para si. As notícias da filha funcionam como estímulo diário para uma fuga da sua realidade opaca. Comenta que anda abatida, cansada de trabalhar muito, sem motivação e o quanto saber da filha a deixa bem. Apesar do marasmo, a mãe é intensa em todas as cartas e, mais de uma vez, repete o quão fundamentais são as respostas imediatas. “Por favor não deixe passar tanto tempo, suas cartas são importantes para mim”, “eu sei que você está ocupada, mas tente escrever, é tudo que eu tenho”. Em certo momento se frustra com a negligência de Chantal: “Está ficando irritante, você nunca responde minhas perguntas e isso está me incomodando. Por favor responda dessa vez”. A dedicação da mãe pelas cartas é tamanha que chega a pedir desculpas por não ter respondido uma das cartas no mesmo dia em que a recebeu e por reclamar, diz que o importante é que a filha esteja feliz.

Nelly conta, de maneira superficial, as novidades do marido que precisa emagrecer cinco quilos; de Sylviane que está na época de exames no colégio; de que vão viajar no verão e de que foram no aniversário de uma criança que já está aprendendo a escrever. Fala sobre um casal que vive brigando e irá se separar nas próximas cartas, da moça que engravidou e escolheu parar de trabalhar, da mulher que quer sair do emprego mesmo tendo um cargo importante e do garoto que passou nas provas finais e vai estudar fotografia em Paris apesar dos pais não concordarem. Os assuntos trazidos são tão universais, que todas essas pessoas conhecidas em Bruxelas poderiam existir também em Nova York, “Lilly e Alain”, “Corinne”, “Marilyn” e “Danny”, poderiam ser esses sentados no banco do vagão, atravessando a rua apressados, ou descendo a escada do metrô.

A cidade não demonstra interesse nos assuntos rotineiros trazidos pela mãe. Não há nada de novo vindo “de casa”, não há nada de extraordinário na vida dela. Com exceção das duas primeiras cartas, sons de carros e metrôs atropelam as leituras seguintes e ficamos sem ouvir diversos trechos delas constantemente. Numa dessas cartas, Nelly diz que recebeu o roteiro do próximo filme e, elogiando estar bem escrito apesar de achar triste e deprimente para o seu gosto, reconhece a importância da questão social abordada e torce para tudo dar certo. O filme em questão é Hotel Monterey, 1975, outro documentário dirigido pela cineasta nos Estados Unidos; comenta também sobre as pessoas estarem surpresas pela filha gostar de Nova York, pois dizem que a cidade é terrível e inumana, porém talvez as pessoas não saibam como é e julguem rápido demais. Mesmo quando a mãe traz assuntos mais interessantes ao espectador, a leitura é interrompida tantas vezes que somos instigados a ignorá-la e prestar mais atenção nas imagens banais do que na narração. O interesse é mesmo pelo trivial.

A mãe da cineasta é um tipo bastante comum, tem receio que filha ande sozinha a noite, quer saber se mora em uma área segura, com quem vive, quanto paga de aluguel, se deve para alguém e sempre que pode envia dinheiro e roupa. O pai, que nunca é o autor das cartas, conversa com a filha através da mãe, se preocupa que tenha amigos, espera que ela seja famosa e diz adorar ouvir suas cartas. Ele manda beijos e, junto com Sylviane, tem seu nome assinado sempre. Nelly conta que um dia o pai sonhou que Chantal voltou pra casa mas foi embora de novo e isso o deixou deprimido o dia todo.

Esse é o segundo assunto mais recorrente nas cartas: quando a filha volta. Mesmo que a decisão de morar em Nova York, ou a de não voltar para Bruxelas, pareça definitiva, a mãe ignora esse fato e a questiona quase sempre. “Não fique triste se eu perguntar quando você vai voltar. Eu não posso evitar, se eu tiver notícias de você regularmente, eu não fico tão preocupada, então por favor escreva com mais frequência”. A mãe conta que estão planejando construir uma casa que é o sonho do marido e ele quer construir um lugar confortável para a filha morar quando ela voltar. “Eu espero que você venha para casa logo”, “quando você vai voltar?”. Nelly relembra o tempo todo o carinho vindo de Bruxelas e o quanto ela é amada em casa, “todos sempre perguntam de você”, “Sylviane sente muito sua falta, às vezes ela sonha que você voltou”, “se você soubesse o quanto seu pai tem orgulho de você”.

Chantal Akerman parece saber lidar com a pressão da mãe, continua fazendo suas escolhas e seguindo seu caminho. Ela não cede, não aumenta a frequência das cartas e não volta para visitar. Mesmo não tendo acesso às respostas enviadas, é através das imagens de Nova York que sabemos como vai a filha sumida, elas mostram que a filha-diretora se mantém em movimento, em fluxo constante e aprecia a fluidez da vida existente em frente a câmera.A escolha pelos planos longos reforça o hiper-realismo existente também em Jeanne Dielman (1975), vemos o espaço-tempo ser dilatado, exaltando a convivência não-verbal entre as pessoas; temos a familiar impressão de que nada acontece. Nada acontecer é outro tema frequente na obra da cineasta.

A elasticidade do tempo faz o espectador se ater aos detalhes dentro do quadro: os gestos, o comportamento, as pichações do metrô, as roupas e os carros da época. O acaso dos planos longos acontece de forma sublime quando vemos o carinho de um casal de jovens e somos interrompidos por um metrô que passa em frente a cena, nos permitindo acompanhar o beijo através do recorte rápido das janelas dos vagões, ou em todas as vezes que a câmera é percebida, seja com a inocência de quem não faz ideia de que está dentro de quadro, como a mulher de vestido rosa no vagão olhando sem nenhuma vaidade ou preocupação; com uma curiosidade disfarçada, como o senhor dando uma volta em torno de si mesmo três vezes enquanto desce a rampa do metrô; ou como uma afronta pessoal, como com o senhor de camisa e calça xadrez verdes encarando com arrogância a lente até se desequilibrar dentro do vagão, quando o mesmo diminui a velocidade. A verdade é que tudo pode acontecer no “nada acontece”, basta definir o que é o “nada” e o “tudo”.

A porta do vagão se fecha e com ela o fim de mais uma carta melancólica, a décima sétima. Nesta cena vemos o metrô partir levando o ruído intenso do filme com ele. Depois de mais uma disputa por um espaço entre o som da leitura e da cidade urbana, Chantal Akerman nos presenteia com dez minutos de silêncio. Sem o barulho de Nova York temos a possibilidade de contemplar apenas a imagem e deixar o som, sempre tão marcado e intenso nas obras da diretora, em segundo plano. Através da janela de um carro a cidade passa ora correndo, ora em marcha lenta e nos faz revisitar lembranças vividas naqueles espaços mesmo elas nunca terem existido; o comércio fechado com as grades abaixadas trazem ares de despedida. O passeio também se assemelha ao de um visitante com o olhar distanciado, sem vínculo, apenas contemplativo. Chantal Akerman parece ter uma combinação harmônica entre apego e distanciamento. Ela é belga, um país onde se fala francês mas não tem os hábitos da França, e neerlandês, o qual parece mas não é holandês e tampouco a Holanda. A Bélgica, esse lugar pequeno, aparentemente sufocado por países vizinhos, sem cultura religiosa e não prega o patriotismo, traz espaço para que cada um se invente, se entregue ao desconhecido e crie novas raízes — mesmo quando temporárias. A filha-diretora não vai voltar “pra casa” tão cedo, a casa dela é onde o filme habita.

Quando o silêncio termina, voltamos a ouvir o ruído da cidade com a intensidade de antes e alguns minutos depois vem a leitura de mais uma carta. Os treze minutos entre esta e a última se tornam uma eternidade quando se estava acostumado a um intervalo de aproximadamente dois minutos. “Semana passada três cartas e essa semana nenhuma” — reclamou Nelly antes de saber que ficaria até quinze dias sem notícias da filha. “Por favor”, ela implora, “não deixe passar tanto tempo, suas cartas são importantes para mim”.

Sutilmente Chantal Akerman está nos transformando na sua mãe que anseia pela chegada de novas cartas. E não muito diferente de como fez com seus pais, ao ir embora sem dar uma palavra, ela encerra a última leitura com o som da cidade sobreposto ao da narração antes mesmo do término, não ouvimos nem a usual despedida da mãe. Acompanhamos a câmera fazer seu último passeio, se afastar dos trilhos, da estrada e das calçadas e vai para o mar. No barco, o trajeto é preciso: para longe de Nova York. Não há mais o fluxo de pessoas indo e vindo, tampouco de carros e metrôs. Aos poucos vemos a ilha de Manhattan ficando pequenina até se transformar em um bloco cinza, opaco e irregular, o qual somado ao novo som das gaivotas e ao motor do barco sobre as águas formam o cenário de um novo possível destino. Os sons e as imagens de Nova York se despedem das cartas, do filme e de nós.

Chantal Akerman nasceu na Bélgica, de família judia, sua mãe e seus avós foram deportados para Auschwitz, tendo só a mãe sobrevivido. Estudou cinema mas largou o curso para fazer seu primeiro curta metragem, Saute ma ville (1971). Se inspirou em seguir carreira como cineasta após assistir o filme do Godard, Pierrot le fou (1965). Faz parte dos 100 melhores filmes escolhidos pela crítica em 2012 pela revista britânica Sight and Sound, sendo desta lista a diretora mais jovem a dirigir o primeiro longa metragem, o aclamado Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080, Bruxelles (1975), realizado quando tinha 24 anos. Apesar de ser um expoente do cinema feminista, não gostava de rótulos, recusava ter sua obra considerada feminista, experimental ou LGBT; não aceitava participar de festivais de gênero pois acreditava que sua obra se restringia quando limitada a estereótipos. Faleceu em 2015, aos 65 anos deixando um acervo de mais de 48 obras, entre curta-metragens, longas de ficção e documentário, além de instalações e exposições artísticas.

Esse filme faz parte do meu desafio para o #52filmsbywomen.
Conheça a proposta de assistir a pelo menos um filme por semana que seja dirigido por mulher acessando o site Women in Film e acompanhando a hashtag no twitter.

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Lígia Maciel Ferraz
News From Home

Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes