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Como "Mutações", de Liv Ullmann, me ensinou sobre ler livros e se escutar.

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
4 min readApr 17, 2018

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Photo by Matthew Kosloski on Unsplash

Ando me questionando sobre como leio livros. Me recuso a entrar no mar se não for pelo mergulho. Há tempos só leio aquilo que de algum modo mexe comigo. Mas não sobre isso, e sim sobre a forma que leio, me lembrei de dois episódios em que devorei livros.

O primeiro foi quando eu tinha uns dez anos e lia um desses suspenses juvenis. Naveguei na história, pensava nela o tempo todo até perceber que se continuasse a leitura nesse ritmo frenético, logo chegaria ao fim. Com medo daquela experiência incrível acabar, fechei o livro e guardei no fundo da gaveta. Deixei ele lá e o esqueci. Quando abri novamente, a onda já tinha passado há tanto tempo que não lembrava mais de quem era quem.

Noutro episódio, perto dos vinte, peguei emprestado o livro de uma amiga e novamente tive uma experiência devoradora. Não era bem a história que me envolvia, mas a personagem. Ela era profunda e emocionante. Mergulhei de cabeça e dessa vez não poupei o final. Inclusive fui deitar mais cedo para ler e acabei pegando no sono. Despertei durante a madrugada e, arrependida de ter cochilado no meio da leitura, terminei às pressas e aos prantos.

Eventualmente eu devoro livros. Isso acontece quando me conecto profundamente com aquele universo. Fico curiosa e obcecada. Faço um pacto com o diabo: minha vida em troca de um mergulho nas ondas daqueles parágrafos. Quero me transformar na personagem, dizer o que ela diz, xingar, transar, mentir, matar e morrer assim como ela. Quero sua personalidade, seus anseios e suas experiências; conhecer os lugares que ela frequenta, entrar nos museus, nas praças, almoçar a mesma comida, dormir na mesma cama. Quando devoro, só peço para viver outra vida, ser outra pessoa. Afogar a protagonista e ocupar o seu lugar. Devoradora de entranhas, canibal.

Mas tem outro tipo de livro onde isso não ocorre. Se começo a devorá-lo, me engasgo e vomito. Protagonistas que leio enquanto vejo meu reflexo no espelho das páginas necessitam ser degustadas calmamente para uma digestão sem traumas. Degustar livros é apreciar o aroma dos significados, entender a composição das palavras e sentir o sabor das personagens. É ir com ( c )alma, com tempo. É nadar em águas profundas sabendo do risco de morrer afogada.

Isso tem acontecido com o livro que estou lendo: Mutações (1976), da Liv Ullmann. Eu tinha iniciado a leitura, mas andava dispersa demais e não dei conta. Parei. Minha fome era canibal, mas precisei aprender a degustar. Passaram-se alguns anos e o retomei. Leio com muita (a)tens(ç)ão, uma palavra por vez, com uma cautela às vezes congelante. Não sei o que vem a seguir. Já li, distraída, parágrafos inteiros para no fim receber o soco na garganta que me aguardava. Vejo a mutação de Liv Ullmann acontecer palavra a palavra e penso na coragem que foi lançar esse livro, se expor sem máscaras, sem vergonha e com muita honestidade.

“Esse terrível ‘sentimento de culpa da mulher’. Não tenho coragem de ouvir música quando estou no porão, com medo de que lá em cima, pensem que estou aqui simplesmente à toa. Sinto que, para ser respeitada, preciso produzir panquecas, pão caseiro e manter os quartos limpos e arrumados.”

A minha identificação com ela, infelizmente não é com a honestidade da escrita — antes fosse (e sobre isso, tenho vontade de devorá-la). Me identifico com a forma que observa o comportamento dos outros, as relações obcecadas vividas, a crueldade consigo mesma, a pressão de nunca achar que está bom o suficiente, que é boa o suficiente, e com o fato de que estar sozinha nem sempre tem a ver o físico. Leio uma nova linha e engulo a seco esse conjunto de palavras amargas que sangram minha garganta, sei que a digestão está comprometida. Liv Ullmann escreve o que ela diz, mas eu leio o que quero. Quantas vezes li o que quis? Preciso me concentrar para ler o que ela está dizendo. Mesmo sendo tão clara.

Seguimos.

Descendo alguns metros em águas profundas, questiono o poder das palavras. Me pergunto se as minhas falam o que querem dizer. Ou ainda, se eu sei o que elas estão dizendo. E sobre isso só penso em aprender a me ouvir. Rubem Alves começa seu texto “Escutatória” dizendo:

“Sempre vejo anunciados cursos de oratória.
Nunca vi anunciado curso de escutatória.
Todo mundo quer aprender a falar.
Ninguém quer aprender a ouvir.”

Ele fala muito sobre ouvir o outro, e como temos uma necessidade esquisita de complementar a fala do outro, como se não bastasse o que ele diz. Mas não só sobre isso, mas também sobre como não escutamos a nós mesmos. Tem tanta coisa que fica tão evidente quando a gente se escuta que é doido pensar que fazemos isso tão pouco.

Ok, já estou a dias trabalhando nesse texto. Já o devorei e degustei algumas vezes. Vomitei em todas. Preciso praticar apneia no oceano das minhas palavras; escrever e ler, repetidas vezes, em voz alta, até ouvir tudo que estou dizendo. Receosa, ouso dizer bem baixinho só para mim que com essas medidas poderei enfim degustar a protagonista da minha vida e me digerir sem traumas, sem canibalismo. É preciso ouvir o que se diz, Lígia.

Seguimos.

Liv Ullmann

(Texto originalmente publicado em 22 de junho de 2015)

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Lígia Maciel Ferraz
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Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes