Um lugar escuro, uma tela imensa

e uma paixão chamada cinema

Lígia Maciel Ferraz
News From Home
10 min readSep 3, 2018

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Foto de Wim Wenders do livro Lugares, Estranhos e Quietos

Inspirada pelo texto da minha amiga Michelle Henriques, do blog Feminist Horror, decidi compartilhar também os filmes que acompanharam minha vida e como foi estar cercada deles.

Minhas primas dizem que a primeira vez que elas foram ao cinema foi quando meu tio levou todas nós para ver O Rei Leão. Eu não lembro de ter ido, porém não sei que outro lugar eu poderia estar se não com elas. Mas se o primeiro não foi O Rei Leão, certamente foi Babe — O Porquinho Atrapalhado, esse sim lembro claramente de ter visto com meu pai em uma viagem que fizemos em família para Buenos Aires.

O cinema do Beiramar Shopping de Floripa era o único que dava para ir a pé tranquilamente de casa ou do colégio, eu gostava de ir desde bem nova e logo se tornou um hábito. Ia com minhas amigas, sozinha, com meus pais… sempre que tinha a oportunidade eu movimentava uma ida ao cinema.

Assisti Titanic na telona com minhas duas melhores amigas da época quando devíamos ter uns dez anos. Elas choraram muito durante o filme e, envergonhada de não ser tão emotiva quanto elas, forcei um choro e saí do cinema fungando o nariz e enxugando os olhos secos.

Quando estreou Godzilla o colégio que eu estudava organizou uma ida ao cinema para assistirmos ao filme junto com outras turmas. Era de manhã e tivemos que entrar no shopping pelos fundos, eu nunca tinha ido ao cinema naquele horário e tudo foi muito mágico. Do filme não lembro nada.

Eu assistia muita Sessão da Tarde e amava Abracadabra, era um filme que toda vez que passava eu gostava de ver, até que uma vez, não sei porque, fiquei com muito medo, liguei chorando pra minha mãe e nunca mais quis assistir de novo.

Abracadabra (1993)

Com Meu Primeiro Amor aconteceu parecido, era um dos meus favoritos e assistia toda vez que passava na TV. Sempre ficava muito triste na cena do enxame de abelhas até que uma vez chorei demais nessa parte e passei o dia todo mal, foi então que decidi nunca mais ver o filme.

Meu primeiro beijo foi depois da sessão de O Sexo Sentido. Eu e minhas amigas já tínhamos combinado com os meninos que eu e um deles íamos ficar. Assistiríamos ao filme todos juntos e deixaríamos para dar o beijo lá, mas eu tava tão nervosa que não rolou, fiquei uma estátua, nem conversar com ele, conversei, nem prestar atenção no filme, prestei. Só quando acabou que tava aquela pressão toda pra gente se beijar que a gente ficou. E foi horrível, by the way.

A minha relação era muito mais com a tela grande do que com o filme em si. Amava a experiência de sentar em uma sala escura e assistir em um tamanho mil vezes maior que o meu uma história mil vezes mais interessante que a minha.

Eu gostava muito de alugar filmes. Ia na locadora escolher um mas acabava levando uns três. Assitia com minhas amigas em casa, a gente fazia brigadeiro e comia com pipoca ou com pão de queijo, hábito que depois fui repetir com meu marido antes mesmo de sermos namorados. Uma vez aluguei Meninos Não Choram e uma delas ficou brava comigo porque o filme era muito triste e tinha deixado ela mal. Era triste mesmo, mas eu tinha amado.

Teve um filme que eu entrei na sessão de cinema faltando vinte minutos para acabar. A moça da bilheteria não queria me vender o ingresso, só para a sessão seguinte, mas depois de tanto insistir ela vendeu. Era para eu poder dar uns beijos no menino que eu gostava. O filme? Nem lembro.

No cinema gosto de sentar do meio pra frente. Em casa, desde os meus onze anos a TV fica só na sala. Quando morava com meus pais eu acabava vendo muito filme no meu quarto com o notebook no colo e fones de ouvido, até hoje tenho esse hábito e não me incomoda em nada, sempre gostei do filme assim bem perto. Uma vez minha mãe entrou no meu quarto enquanto eu assistia Irreversível e foi “desenrugar” minha testa porque eu tava com ela franzida de tanta tensão. Quem assistiu ao filme sabe do que eu tô falando.

Eu amei ter visto Bicho de Sete Cabeças e foi com ele que passei a gostar de Arnaldo Antunes. Sobre Meninos e Lobos também vi no meu quarto com o notebook no colo, fiquei tão impactada com a história que assisti de novo assim que o filme acabou. Monster — Desejo Assassino vi em um fim de semana em que eu estava sozinha em casa. O telefone tocou logo nos créditos finais quando eu ainda estava digerindo tudo, era meu pai me dizendo que meus dois irmãos tinham sofrido um acidente grave de carro e estavam internados no hospital. Sempre que lembro do acidente, lembro do filme e vice-versa.

O que eu mais gosto nos filmes é como eles me permitem acessar a coisas tão profundas dentro de mim que nem eu mesma sabia que existiam. Um filme que me deixa com a garganta enozada, com o estômago embrulhado, com a cabeça latejando, com os pensamentos vorazes, pra mim é um filme bom.

Foi mais ou menos quando eu tinha uns 15 anos que conheci o cinema do CIC, a sala pequena e intimista era um amor só e passei a frequentar bastante. Um dos filmes queridinhos que eu vi lá foi Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e depois ganhei o DVD e pude reassistir mais um milhão de vezes. Foi a primeira vez que gostei do Jim Carrey. Respiro foi um outro filme maravilhoso que vi nas primeiras fileiras da salinha e lembro bem da vontade de abraçar a protagonista que era essa mulher que todos consideravam louca quando ela era na verdade livre, me marcou muito e foi o grande responsável por eu ter vontade de conhecer o sul da Itália.

Respiro (2002)

Edukators aluguei na locadora e me impressionou tanto que, anos depois, tatuei uma das frases do filme em mim (todo coração é uma célula revolucionária). Assisti várias vezes nessa época e confesso que depois de alguns anos fiquei com receio de ver e não gostar mais, porém outro dia vi uma ceninha só e o coração esquentou de novo, então acho que tá tudo bem, a frase ainda continua fazendo muito sentido pra mim.

Eu tava no segundo ano do ensino médio quando decidi cursar cinema. Já sabia que queria algo da comunicação, estava entre jornalismo e publicidade e quando soube que existia faculdade de cinema achei a ideia muito mais legal e decidi assim. Meu pai, querendo me preparar para o curso, organizou algumas sessões de filme em casa e foi quando assisti Ben-Hur, Cidadão Kane e Os Brutos Também Amam.

Match Point foi o primeiro do Woody Allen que vi. Eu nem sabia quem ele era, mas depois desse fui atrás dos mais antigos e passei a ver os seguintes que estreavam no cinema até perceber que era tudo mais do mesmo e hoje não fazer questão alguma do cinema dele, embora ainda tenha boas lembranças de Hannah e Suas Irmãs, Interiores e Vicky Cristina Barcelona.

Em 2006, quando entrei na faculdade, entreguei um currículo zero relevante para a locadora de vídeo que eu frequentava desde criança e por acaso me contrataram, foi meu primeiro emprego. Já era na época dos DVDs e tinha uma sessão de VHS a venda por 1 real, de vez em quando aparecia alguém que levava uma sacola cheia. Também iam vários homens comprar VHS pornô e uns outros que alugavam o pornô e me entregavam para fazer a cobrança entre outros dois blockbusters, era sempre um susto. Eu odiava ter que atender clientes e de vez em quando dava um perdido e ficava entre as prateleiras colocando os filmes em ordem e vendo o nome de todos aqueles que eu ainda não tinha visto.

Assisti Tudo Sobre Minha Mãe algumas vezes para ver se eu gostava tanto quanto meus outros colegas, mas do Almodóvar meus favoritos continuam sendo Fale Com Ela e Volver.

Ter visto o Richard Gere novinho em Gigolô Americano me deixou bem surpresa e foi a ponte pra eu ter assistido um dos meus filmes favoritos, Cinzas do Paraíso, também com o Sam Shepard que eu adoro e foi roteirista de Paris, Texas — outro filme que tá entre os que eu mais amo.

Paris, Texas (1984)

O primeiro contato com David Lynch foi com Cidade dos Sonhos, quando eu vi e revi muitas vezes para um trabalho pra faculdade, mas o que mais amo no cinema dele é a relação com a música, como na cena do Clube do Silêncio em que a Roberta del Rio canta Llorando, ou em Veludo Azul onde o Dean Stockwell canta In Dreams, do Roy Orbison, e até mesmo com o Nicolas Cage cantando Elvis em Coração Selvagem. Aliás, Laura Dern, te amo.

Eu me sinto bem boba por nunca ter gostado de filmes de horror, embora eu adore filmes sangrentos que abordam a violência, especialmente a psicológica. Cães de Aluguel, Nascidos para Matar e Taxi Driver por um tempo foram os meus queridinhos, aí veio a Claire Denis com Desejo e Obsessão e levou o sangue para outro patamar, e também o Haneke que aborda a violência de um jeito que sempre me impressiona e até hoje lembro do choque que foi ver Violência Gratuita pela primeira vez.

No Canal Brasil assisti a um documentário em que entrevistavam moradores em situação de rua e que abriu muito a minha cabeça, mas infelizmente não lembro mais do nome. Notícias de uma Guerra Particular também foi um filme importante que me ajudou a ter outras perspectivas sobre as diferenças sociais no Brasil e até hoje lembro da cena em que filmam o cara fugindo por cima das casas enquanto a polícia corre atrás.

Na faculdade conheci um dos meus diretores favoritos, Karim Ainouz, com Madame Satã e O Céu de Suely. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo tem um dos títulos mais bonitos que eu já vi.

Foi bem ao acaso que coloquei no Telecine Cult logo antes de começar um filme novo que acabei conhecendo Kim Ki-Duk. Casa Vazia é definitivamente um dos meus favoritos e tenho muita vontade de rever O Arco.

Casa Vazia (2004)

Nos anos últimos anos em que fui a Porto Alegre eu e meu pai sempre fazíamos um dos meus programas favoritos: sessão dupla no Guion Center. Numa dessas vezes vimos O Caminho para Guantánamo e lembro de ter ficado muito chocada com a história toda. Com a minha mãe uma vez em Joinville, fomos ver um filme em que a sala estava praticamente vazia e o ar condicionado no talo. Dividimos uma jaqueta jeans entre nós duas pra tentar amenizar o frio, não lembro qual era o filme mas acho que tinha o Ed Harris.

Foi com Ladrões de Bicicleta que eu vi o meu marido chorar pela primeira vez. Eu dormi no fim do filme e quando acordei ele tava chorando. A gente tinha recém começando a sair e fiquei meio assustada porque eu perguntava o que tinha acontecido e ele não dizia nada, só enxugava as lágrimas. Depois entendi que era por causa do filme.

Durante a faculdade conheci o trabalho de diretoras maravilhosas que me deixaram bem impressionada: XXY, da Lucía Puenzo, A Menina Santa, da Lucrécia Martel e Cléo das Cinco às Sete, da Agnés Varda. Uma pena que naquela época eu não cheguei a me aprofundar muito no cinema delas.

Chantal Akerman, hoje uma das minhas cineastas favoritas, eu só conhecia o nome mas durante a faculdade não vi nada. Eu tinha o DVD de Jeanne Dielman mas por algum motivo não funcionava no meu aparelho e fiquei com ele guardado por muitos anos sem nunca ter assistido. Fui ver pela primeira vez esse ano e foi uma experiência maravilhosa.

Em muitos momentos durante a faculdade eu perdi o interesse em assistir aos filmes novos que saiam, eu ainda gostava muito de ir no cinema, e ia nos festivais quando dava, mas as histórias já não me surpreendiam tanto. Depois de formada, aos poucos fui me distanciando do cinema embora nunca de uma maneira total e consciente. Passei a assistir mais as séries e eventualmente ia no cinema para ver algo bem específico. Em 2016 quando assisti Aquário, A Criada e Moonlight, voltei a ficar mais animada e interessada pelo cinema.

Moonlight (2016)

Quando fui embora do Brasil me desfiz de basicamente tudo que eu tinha e desapegar das coisas foi até bem fácil, mas confesso que me desfazer dos DVDs foi mais sofrido do que eu imaginava.

Desde o começo desse ano tenho me dedicado mais a assistir filmes dirigidos por mulheres, já que deu pra perceber que minha formação foi basicamente toda feita através das narrativas masculinas. E agora conhecendo a pluralidade das protagonistas e diretoras mulheres, é muito doido pensar o quanto isso poderia também ter influenciado na minha formação pessoal desde o comecinho da minha história com os filmes.

Quando comecei a ouvir o Podcast Feito Por Elas, uma chama que tava lá dentro de mim quase se apagando, reacendeu. E foi inspirada por tanta mulher inteligente que fala de cinema que eu voltei a ter vontade de escrever e a estudar mais sobre os filmes.

2018 tem sido um ano bem doido, mas ao mesmo tempo tem sido muito gratificante passar os dias acompanhado pelo cinema feito por mulheres. Fico encantada toda vez que vejo Andrea Arnold, e para sempre vou amar Queridinha da América e Aquário; assim como Pária da Dee Rees, A Teta Assustada, da Claudia Llosa e Tomboy da Céline Sciamma. Espero também ter outras gratas surpresas como foi quando assisti Histórias que Contamos, da Sarah Polley e E Agora Onde Vamos?, da Nadine Labaki.

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Lígia Maciel Ferraz
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Brasileira morando em Lisboa. Doutoranda em Media Artes