Iran Xukuru

Nez Magazine
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9 min readOct 22, 2017
Foto: Reprodução

Tekó Porã

Publicado na edição #NEZMAG06

Essa entrevista é um pequeno resumo desses encontros que a teia da vida torna possível e que nos transformam profundamente. Quando nós, do coletivo Tekó Porã chegamos na aldeia indígena Xukuru do Ororubá, no agreste pernambucano, para realizar as filmagens de Xeker Jetí — Casa dos Ancestrais, tivemos a oportunidade de cruzar conhecimentos e afetos com pessoas incríveis, gentes de profunda sabedoria ligada à terra e à espiritualidade. Uma dessas pessoas que nos marcou profundamente pela clareza com que percebe as causas socioambientais e econômicas do Brasil foi o agrônomo indígena Iran Xukuru. Logo no dia em que chegamos, batemos papo no pôr do sol sentados no terreiro de ritual. Nessa conversa Iran nos esclareceu sobre a situação política, cultural e social dos Xukurus, o projeto de vida e o resgate cultural que está acontecendo desde a retomada de parte de seu território tradicional.

Além disso, Iran como liderança religiosa e política indígena de uma das maiores etnias do nordeste nos abriu a mente para as questões comuns aos indígenas do Brasil e da população como um todo. Em um momento onde o sistema capitalista dá sinais de exaustão e a natureza é a cada dia mais devorada e devastada pelo agronegócio, pessoas como Iran são um respiro e fonte de esperança de que sim é possível pensar e construir novas maneiras de viver. Novas maneiras que nada mais são do que o antigo jeito dos povos originários de viver — estar conectado com a natureza e seus encantos — assim como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que “para sobreviver nesse mundo do século XXI será preciso que reaprendamos a ser índios”. Compartilho aqui trechos que considero fundamentais na conversa para que a gente compreenda a importância de outros muitos saberes que nos cercam, principalmente que “se quiser ver a ciência, vá na mata procurar”.

Sabemos que para os povos indígenas a prática da agricultura está intrínseca a sua identidade e ao modo de viver. Você como agrônomo e indígena pode nos falar dessa relação da agricultura com o modo de vida do povo Xukuru.

IRAN — Nós vemos a agricultura enquanto modo de vida, elemento de identidade, também uma forma de expressar a cultura, uma prática bastante ampla e que possibilita a reativação de uma memória coletiva. Se a gente observar, o relato das pessoas, dos detentores dos conhecimentos tradicionais, todos eles são relatos baseado numa vivência, numa prática cotidiana onde a agricultura era a vidas das pessoas, o plantar, o colher, o comer e o que está relacionado a isso ou seja os saberes que estão relacionados. A partir daí a gente começou a discutir e ver que a agricultura enquanto modo de vida era essencial para que a gente possa projetar ou viver esse projeto de vida futuro. Uma coisa interessante, tudo que a gente faz, a gente procura de certa forma uma orientação, as pessoas mais velhas, que tem esse conhecimento essa ciência. Em 2012, foi um ano muito importante pra nós, reencontramos esse terreiro, reativamos esse terreiro. Eu vim com um grupo aqui de Cana Brava, e era pra gente desmatar essa área, na época não estava tão verde. Tão fechada como está começando a ficar, mas era pra plantar, fazer cultivo de mandioca, ou seja, a gente iria revitalizar a cultura da mandioca que estava, em virtude da seca se acabando. E aí de repente a gente descobre que tinha um terreiro aqui que era próximo a área. Aí quando a gente vem olhar o terreiro, caí a ficha. A gente poderia ter destruído um espaço que era sagrado pra produzir uma cultura que iria também ajudar nesse processo de fortalecimento da identidade da cultura Xukuru. A partir daí a gente assume um compromisso de não só reativar o terreiro, de fazer um ritual, mas de quando for fazer qualquer coisa relacionada a agricultura, consultar as pessoas que tinham esse conhecimento e esse dom de dialogar com os encantados. Anterior a isso a gente estava olhando a área,um senhor olhou pra nós e disse: — vocês já pediram permissão para o dono? A mensagem daquele senhor era “vocês pediram permissão ao dono da mata, ao dono da floresta, as entidades religiosas? Espirituais do povo.”A gente de fato não pediu. Então foi meio que um aviso, a partir de então a gente começou a repensar a prática da agricultura. Que agricultura é essa? O que de fato nós queremos produzir? Ou reproduzir com essa agricultura, como ela pode caminhar no sentido de fortalecer nossa organização social, o projeto de vida do nosso povo. Então a agricultura do sagrado é o que a gente tem que fazer. Ou seja, o tempo dos mais velhos, a terra velha, justamente a filosofia de vida Xukuru está baseado nessa relação de fidelidade com o esse mundo velho e que hoje ele é encantado, né?

Você falou da filosofia de vida Xukuru, e em pouco tempo que estamos aqui já ouvimos falar algumas vezes no Limolaigo Toipe que é a filosofia do Bem Viver. Viver de forma harmônica com todo o ecossistema. Você pode explicar melhor sobre o que é essa filosofia?

IRAN — O termo Limolaigo Toipe, ele é novo. Ele surge como o chamado de uma assembleia anual que era um chamado para o primeiro encontro de agricultura que acabou não acontecendo. O chamado Limolaigo Toipe, era justamente pra dar visibilidade pra a forma de vida ancestral baseado na prática e nos saberes da agricultura enquanto modo de vida. E a gente observa que os princípios, os valores que nortearam a retomada das terras, que nortearam a resistência, a luta do povo Xukuru estava nesses princípios da agricultura onde estavam incluídos dentro do Limolaigo Toipe. Naturalmente ele começa a ser essa filosofia. A terra dos ancestrais. Na cabeça dessas pessoas a filosofia, os princípios, e os valores do povo Xukuru está lá trás. Então, essa filosofia é aquilo que eu já falei, é justamente a fidelidade e a crença no mundo dos encantados. Ela trás como princípios e valores a ajuda, a outras economias que não só a monetária e outros sistemas de cura. A preservação, o respeito a natureza, o respeito ao índio, ao parente, ao próximo. Regras, acordos e convivência. Então, uma filosofia que não é nova, mas que ao mesmo tempo aparece como o novo, porque ela começa a juntar vários elementos e vários princípios e testemunhos de vida. A gente está vivendo hoje um momento muito importante de trazer, de reativar essa memória coletiva e começar a colocar em prática. Essa necessidade de colocar em prática, ou seja, existem várias formas de lutar contra o sistema. É combater ele diretamente, de mobilização externa e tem também a mobilização que é interna, ou seja, eu sou contra então eu não posso replicar o modelo. E essa filosofia está nos ajudando a isso. Fora agrotóxico! Então, agrotóxico não pode entrar na minha terra, ou seja, se entra é um processo de colonização. Ou seja, é fruto de um processo posterior da invasão da terra que é a invasão da mente, a colonialidade, mas a gente tem que combater. E é isso que a gente está fazendo. Então, essa filosofia de vida ela começa também a nos questionar. Ou seja, é uma autocrítica, é um questionamento que a gente faz de que a gente precisa de certa forma romper. É um processo de ruptura. Romper com o modelo, mas não significa se isolar da sociedade.

É muito interessante isso que você fala de não se isolar da sociedade. Eu percebo que cada vez mais os movimentos indígenas fazem parcerias com seus aliados indígenas ou não, e são parcerias de trocas de conhecimento, partilhar os saberes fugindo do estereótipo assistencialista. Isso está acontecendo aqui, agora, nós por exemplo viemos, junto com o pessoal do Ocupe Estelita participar da vivência de bioconstrução da oca de cura, compartilhando diferentes tipos de conhecimentos e percebemos que temos muito mais em comum do que o sistema gostaria. Você pode comentar sobre esse compartilhar com a população da cidade, um diálogo mais direto com a sociedade civil.

IRAN — Esse primeiro contato ele surgiu com esses aliados do Ocupe Estelita surgiu numa mobilização que o Ocupe estava fazendo em Recife. Contra um grande empreendimento lá do Projeto Novo Recife, então existe toda essa mobilização e um colega Lucas do ocupe veio visitar a reserva no ano passado ou foi retrasado e aí ele nos convidou para ir na ocupação. Fomos lá para relatar um pouco da experiência de resistência de ocupação e pra entender como eles poderiam, montar suas estratégia de resistência e ocupação naquele espaço. Um processo de partilha de experiência no sentido de combater o sistema. O inimigo. E aí a gente observa que tinha e tem muita coisa comum no campo e na cidade, o movimento de resistência ele não está só, ele não está só no campo. Então a gente a partir dessa mobilização com o Ocupe Estelita a gente sugeriu ali várias histórias levamos nossa feira de base agroecológica pra lá, participamos de eventos. Ali, tivemos conhecimento da culinária vegana, da bioconstrução. Eu tinha um conhecimento muito vago. O próprio conhecimento mais assim, a própria aliança detalhada com relação a agroecologia e a gente observou que, o que a gente estava propondo no Xukurus em termos de ação, ou seja, de alimentação, de construção, de produção, a galera da cidade está também discutindo isso né? Ou seja, temos muita coisa em comum. Essas pessoas quando vem pra cá, ou seja, a gente vai pra lá pra dá apoio pra eles, eles vem pra cá, eles começam a ver esse movimento e ver aí que de fato o que eles estão fazendo lá a gente está fazendo aqui em espaços diferente.

Faz parte desse processo pelo qual todos estamos passando de olhar para a tradição, e ressignifica-la dentro da cultura. Acredito que é um processo comum aos povos indígenas e não indígenas, olhar para tudo isso, agroecologia, bioconstrução, alimentação natural que quando a gente vai perceber está tudo lá atrás, nada mais são do que as práticas das pessoas, dos povos que vieram antes de nós. E, isso é fundamental para a manutenção da vida no planeta. Infelizmente, sabemos a situação catastrófica com que os povos originários são tratados no Brasil, eu gostaria que você falasse sobre a questão indígena hoje no país. Para você, o que é ser indígena no Brasil deste inicio de século?

IRAN — Ser índio, no caso ser índio Xukuru é acreditar nos encantados é seguir os encantados, respeitar e seguir essa filosofia de vida e é claro tem uma história que possibilita isso, né? Se afirmar, viver sua cultura e ser aceito pelos outros. O índio ele sempre foi colocado como um empecilho a sociedade, ou seja, é o obstáculo ao progresso e a sociedade deveria agradecer a isso. As terras indígenas que estão demarcadas ou que estão ocupadas pelos índios no Brasil são verdadeiras ilhas verde. E se você pegar a imagem das terras Xukuru no Google você vê que é uma ilha verde ao redor de uma área totalmente degradada e isso após dez anos de gestão dessa terra, porque dez, doze anos atrás não tinha posse completa do território. Então a questão indígena ela é uma questão que é extremamente importante pra vida do planeta e pra vida da sociedade. Um povo indígena tem várias formas de relacionar com a natureza, tem vários saberes, várias práticas. Então todo esse conhecimento, toda essa diversidade qual a essência da natureza? Qual é a essência da vida? A diversidade. Nada que é simplificado, padronizado dura. Então toda essa diversidade ela está ameaçada, toda vida do planeta também está ameaçada. Tem algumas frases do movimento indígena que diz o seguinte, que tenta transmitir pra sociedade que a questão indígena, a demarcação das terras indígenas, quilombolas, enfim, dos povos tradicionais não é só uma coisa boa para o povo indígena é uma coisa boa pra sociedade. Hoje tem várias proposições legislativa anti-indígena e que estão ameaçando direitos já constituídos. A situação política do país é extremamente desfavorável para os povos originários e para os povos de comunidades tradicionais. Essa ameaça potencial com essa bancada que tem no congresso da bíblia, do boi e da bala que é tudo bíblia. Além de tentar matar a cultura e as pessoas matam, tentam matar também um conhecimento que muitas vezes é utilizado para o bem da sociedade. Então, mas a gente acredita que assim como vencemos, como o povo indígenas, ao longo da sua história não só no Brasil mas no mundo venceu. No fato! Venceu como? Nós estamos aqui para contar a história. Fugimos do padrão do que a sociedade coloca.

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