Episódio 1

kasu™
Ninguém (1º edição)
9 min readSep 17, 2013

A incrível jornada de um semi-herói. Talvez os mais fervorosos amigos falem de mim assim depois que eu morra. Ou não, nunca se sabe. O fato é que eu tenho UM super poder, e… existem uns tantos heróis na minha terra. Eu sou um rapaz mediano, magro, um tanto desajeitado, taxado de nerd, poucos amigos. E que se transforma em qualquer coisa que queira. Legal? Nem tanto. Nessa terra existe um grupo de heróis que salvam o mundo de grandes ameaças e tchananã, e eu sou treinado por eles, afinal, eles são os heróis dessa merda toda. São eles: Herói, o grande líder dos caras, sempre com sua armadura de prata e sei lá o quê, o fodão; a Paladina, defensora da justiça, da verdade e de toda essa baboseira que falam, e que deu pra sua própria espada o nome de “Jesus”; o incrível ator, bombeiro, skatista, músico, professor, bacharel, empresário, babaca, e mais um monte de coisas, o Meteora; o enorme e peludo Urso Carinhoso, que mais parece o King Kong de chapéu e óculos; e o capiau do mal, o Cabrobó Selva, um soldado que tem até um facão que fala. Piada pura? Até que não, viu. Os caras são bons no que fazem. E disseram que hoje seria minha primeira missão de campo com eles, no time titular. Legal, né? Não. Não mesmo. Vê só: O Meteora tem um skate que voa, A Paladina é um robô que voa, o Herói tem uma bicicleta que voa, o Urso Carinhoso anda 100m por passo, e o Cabrobó Selva tem acesso a qualquer coisa militar. E eu?

Cabrobó Selva – Pega um ônibus,ué.

Eu – Ok. Mas e o dinheiro?

Herói – Se vira.

Sabe quando você sonha tanto com alguma coisa e se decepciona? Então. Eu sempre adorei esses caras, sempre quis ser igual eles e tal, mas quando fui chamado, aquele brilho que caía deles parece que foi soprado pra bem longe por um ventilador bem poeirento. Só de saber que suas respectivas identidades secretas eram com um bom status sócio-econômico, saber que eu era o único semi-herói pobre entre, sei lá, uns 200 em treinamento, e saber que eu sou o único pobre quase titular, humilha. Muito. Mas tem que ir, né? Vai que eu ganho algo. Nobreza, virtudes, reconhecimento.

Eu – Ônibus lotado é dose cavalar.

Velha do lado – Sabe, meu filho vai fazer aniversário hoje! Eu tou tão feliz!

Eu – É? Porque?

Velha do lado – Ele vai fazer 35 anos! Já contratei os palhacinhos e pedi pra encherem os balões.

Eu – Nossa, ele deve estar tão ansioso. – Destilar sarcasmo não deve ser digno de um super-herói. Mas foda-se, eu ainda tou em treino.

Velha do lado – E você também parece estar muito feliz. Qual o motivo?

Eu – Eu vou cortar o cabelo.

Velha do lado – Nossa. – Finalmente eu fiz ela se calar. Claro que ela percebeu que estava mentindo. Eu acho.

Eu – Vou ver se eu corto meu pescoço fora também. – Eu disse, antes de descer, enquanto lá fora já havia começado o quebra-pau.

O caso é o seguinte: Primeiro, não ria das próximas palavras. Era um ataque ninja dos funkeiros-criminosos de sei lá onde. Os caras são muito engenhosos! Usam suas tocas de pára-quedas, saem das sombras, e a cada golpe que recebem, se dividem em dois. Umas pestes. Eles tem melhores poderes que os meus. Então eu grito lá de baixo:

Eu – Que que eu faço?

Herói – Vira uma seta e controla a multidão. Rápido!

Maravilha. O pior de tudo é que eu vi isso num episódio da Liga da Justiça. Mas o cara lá tinha poderes. Eu viro uma seta enorme, com um “Por aqui, pessoal, fujam dos ninjas!” mas não tavam nem aí. Eu tava feito um idiota no meio da rua. Enquanto os heróis de verdade lutavam lá em cima, eu tava pagando sapo lá embaixo. Alguns muleques ficavam rindo de mim, na cara dura, e eu lá, paradão. E aí a coisa pegou fogo: os prédios começaram a ser atingidos e rachar, e finalmente eu comecei a exercer a minha função primária: controlar a multidão. Eles passavam correndo por mim, e eu só orientava. Claro que eu não tava orgulhoso. Isso era o mínimo que eu podia fazer, se é que eu sabia fazer alguma coisa. Tá. Eu tinha que fazer algo, os heróis de verdade tavam apanhando! Do que funkeiros mas tem medo? Pensa, idiota, pensa.Lindomar, Chuck Norris, não. Tem que ser algo menor. Gramática! Claro, funkeiro que é funkeiro não fala certo nem a pau. Hora de me transformar num mega fone!

Eu – Solicito a atenção de vossa senhoria, ninjas!

Herói – Que porra é essa, novato?

Eu – Neste momento, atenho- me a declarar um soneto, e peço atenção a todos.

Eu declamei o único soneto que eu conhecia, Soneto da Lua. Os ninjas se esfacelavam de um jeito cômico, mas rápido, e os outros estavam espantados. O Herói desceu e lá vinha o esporro.

Herói – Porra, cara! Que foi que eu falei? Controle de multidão! Controle de…

Nessa hora, geral começou a gritar o nome dele, todo mundo comemorando. Êêê! Que merda. Ele fez logo uma pose junto aos outro e mandou-me sair de fininho. Claro, ele é o líder, ele quem manda. Eu obedeço. E ainda teve gente pra me encher. Mais.

Umas minas – Ei ei! Você!

Eu – Eu?

Umas minas – Sim, qual seu nome? Você salvou o dia!

Eu – Nah, eles que salvaram tudo. Eu só tava agradecendo por eles terem me salvo também. Eu estaria perdido sem eles.

Umas minas – Mas seu nome?

Eu – Ninguém importante.

Pelo menos saí com um sorriso. Certamente eles iriam me esquecer depois dessa onda, eu seria chutado do treinamento e expulso de qualquer outra coisa que fosse remetente àqueles super-heróis. Graças a Deus.

Paladina – Ei, você nos ajudou lá atrás.

Eu – Não foi nada. Era o certo. Obrigado por terem me ajudado.

Paladina – Mas não…

Eu deixei ela falando sozinha. Minha primeira e última missão havia sido um fracasso maravilhoso. Era melhor eu voltar pra casa e dizer pra minha mãe que os heróis tinham me salvado e eu estava feliz por estar vivo. Eu até levantei os braços pro céu e me espreguicei, a quanto tempo eu não fazia isso. Eu tava até me sentindo leve.

Garota – Ei, cara. – Não, por favor. Mais um pra me encher sobre super poderes, não.

Eu – Sim? – Eu nem havia me virado pra ela.

Garota – Sua chave caiu.

Uma camisa com uma estampa “Eu dividi por zero.” era incrível. Eu podia, sim, dividir por zero. Ela era roqueira, com cabelos meio curtos, mas… dividir por zero! Se eu posso me transformar em tudo, eu posso me transformar em nada?

Garota – Sua chave. Não vai pegar? – Eu tava sorrindo, cara. Isso é raro.

Eu – Claro! Desculpe. Bela camisa. – Dois sorrisos em um dia? Isso é um novo recorde.

Garota – Ah, isso é besteira. Desculpa. – Eu peguei a chave e ela enfiou as mãos no bolso.

Eu – O quê?

Garota – Olha, sei que essa chave pode nem ser tão importante assim, mas é que num mundo de super-heróis…

Eu – Essa é a chave da minha casa. Cópia única. Eu ia ficar fora dela por…

Garota – No máximo meia hora. Meu pai é chaveiro daqui.

Eu – Eu moro do outro lado do bairro.

Garota – Veio de ônibus?

Eu – E vou voltar a pé.

Garota – Mas é longe. – Ela se alterou um pouco, engraçado. Aflita, talvez.

Eu – Isso é o de menos. – Três sorrisos. – O pior é eu ter que ir comigo pra casa.

Garota – Eu posso te acompanhar? Meu namorado mora por onde você mora, eu acho.

Eu – Se você agüentar.

Garota – Hoje eu vou acabar tudo com ele. Já era. – A gente começa a andar.

Eu – Sério? – Nossa, eu acho que eu não engano ninguém. Ainda estava pensando em dividir por zero.

Garota – Sim, ele é muito indeciso, não sabe se gosta de mim, se gosta de mulher. Odeio indecisão.

Eu – Nossa, que cara maluco.

Garota – Ele é mais uma bichona querendo dar uma de homem e pegar uma mulher. Mesmo eu ainda sendo uma garotinha de 15 anos.

Eu – Nessas horas o que vale é a cabeça.

Garota – Eu tenho um cabeção, ó. – Ela andou mais rápido e fez com as mãos algo como um círculo em volta da cabeça, com uma cara de retardada.

Eu – Você entendeu. – Tá, eu comecei a rir, mas foi engraçado. Parece que me conhece faz uns… três minutos. Mesmo.

Garota – Eu vou lá, acabo com ele e sumo. Desapareço. Cansei de viver… aqui. – Ela abaixou a cabeça, mas sei lá. Dividir por zero. Ela tinha um belo colar.

Eu – De viver aqui? Tipo, cansou de acordar e ver os heróis acabarem com os bandidos? – Sim, eu estava cansado disso. Eu queria que pelo menos uma vez na minha vida, eu pudesse acordar no meio de um campo florido e com o vento batendo na minha cara, e eu me sentisse leve, livre, sei lá.

Garota – Cansei de viver. Perdi minhas esperanças de ser feliz com esse cara, meus pais não tão nem aí pra mim, eu não faço nada direito.

Eu – Imagina se você tivesse super poderes.

Garota – Eu poderia ajudar alguém, ser reconhecida. Sei lá, viu.

Eu andei um pouco na frente e me transformei num cartaz do filme do Jason Statham. Ela parou e o queixo dela foi no chão e voltou. E eu me destransformei e acabei caindo no chão. Merda de gravidade.

Garota – Você tem poderes!

Eu – Por favor. Não diga a ninguém.

Garota – Pode se transformar em qualquer coisa? Qualquer?

Eu – Minha meta é essa. – Eu apontei pra estampa da camisa dela.

Garota – Eu? – Acho que nessa hora, até eu fiquei vermelho. Até ela ficou.

Eu – N-não, sua estampa.

Garota – Morrer? – Ela ficou séria. De uma hora pra outra ela ficou séria. Mas dividir por zero era meu objetivo agora.

Eu – É, talvez.

Garota – Mas você pode salvar o mundo! Seus poderes são… como é a palavra que é algo como “não tem igual”?

Eu – Inexistente. – Ela fez uma cara de raiva! Que legal.

Garota – Já basta eu querendo morrer aqui. – Ela se sentou no chão também.

Eu – Desculpa, mas já existem heróis demais nessa cidade. Eu sou inútil, sabia? – Como eu consigo sorrir falando uma frase dessas? Eu sou muito cínico, só pode ser.

Garota – E daí? Você pode ser mais um, um dos mais famosos, pode ter uma vida boa, mulheres, carros, fama! Tudo!

Eu – Não, não dá.

Ela ficou quieta. Será que eu finalmente convenci ela? Acho que sim. Mas que se foda. Eu quero dividir por zero e ponto.

Garota – Eu sempre fui apaixonada pelo Herói, sabe. Aquele jeito de líder dele, aquela armadura, tudo… ele parece ser tão reluzente… conta pra mim como ele é?

Eu – Ele é legal, decidido, forte, inteligente, honrado e acima de tudo… – Eu sou um merda mesmo. – humilde. Pra caramba.

Garota – Ai, que homem! – Ela se abraçou, acho que como se abraçasse ele. Estranha ela.

Eu – Todos lá são tão incríveis no que fazem! Uns são de elástico, outros atiram papéis na velocidade do som, muito louco.

Garota – E você se transforma em tudo! Não se ponha pra baixo!

Eu – Enquanto eu me transformo, eles já venceram a luta. Eu sou carga.

Ela se levantou e me puxou do chão. Disse que era bom que a gente fosse logo, que tava ficando tarde. Eu levantei e fui com ela até a casa do namorado dela, ficava um pouco distante da minha.

Eu – É, aqui eu te deixo. Desculpa qualquer coisa.

Garota – Desculpa digo eu. Fiquei te enchendo o saco contando aquilo tudo.

Eu – Foi uma ótima companhia.

Garota – Eu pensei numa coisa: Se você pode se transformar em qualquer coisa, você está transformado agora?

Eu pensei em mim mesmo. Se eu estivesse transformado em algo, seria em mim a partir de agora.

Eu – Em mim.

Garota – Está diferente. Está mais… – Ela se calou e acenou. Deu tchau e entrou na casa, e eu fui pra minha, brincando com minha chave. Louco pra dividir por zero.

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