Ágosto

Daniela Zanutto
Ninho de Escritores
3 min readSep 2, 2021

Cada vez que tento retirá-lo do fundo do poço, você me prova que é impossível. Não ajuda! Minha mãe já não gostava de você e nunca entendi seus motivos para isso, mas hoje me questiono: será que ela tinha também tantas memórias ruins durante seus dias?

Nem sempre foi assim, mas há razões para que a população em geral desdenhe de você. Fim das férias escolares, inverno, trin-ta-e-um-dias-sem-fe-ri-a-do. Para o brasileiro já não é um mês agradável, mas para nossa família, é realmente antigosto.

Em 2012 vivi pela primeira vez seus dias em luto. Refazendo-me da perda do Márcio, sozinha no apartamento que habitávamos em São Paulo, organizando a mudança de casa, cidade e vida. Mudar o status de casada para viúva e mãe solo, longe do pequeno filho de 3 anos que mudou de cidade antes da mãe. Por quê? Porque não teria forças para cuidar de mim e dele entre caixas, embrulhos e idas ao INSS.

Dona Neusa não gostava nada de você… recebeu-me feliz de volta a Sorocaba no início de setembro daquele ano doloroso para voltarmos a constituir um lar e passarmos mais alguns anos juntas. Enquanto você nos deu alguma paz, não é mesmo, ingosto?

Exames alterados, biópsia muscular, um diagnóstico difícil. Um relacionamento indefinido: nem namoro assumido, muito menos uma simples amizade. Faltava amor, onde sobravam dúvidas e expectativas. Mais uma vez você chegou, mais uma vez em São Paulo, mais uma vez sozinha. A crise instalou-se facilmente e em 2017 passei grande parte de seus dias numa cama de hospital, quase imóvel. Eu só queria me sentir amada, a qualquer custo. Enganei-me facilmente ao ser chamada de “amor” em um de seus dias. Voltei a Sorocaba, cheia de sonhos, mas que se foram assim como você.

Quando você retornou em 2018, já sabíamos que seus dias seriam os mais difíceis do ano, senão da vida toda. Trouxe consigo a piora do câncer da minha mãe, duas longas internações, sendo uma delas a última e derradeira.

Sabia que Dona Neusa não queria ter registrado meu irmão no dia em que nasceu: 31 de agosto? Pediu ao meu pai para informar no cartório a data de 01 de setembro, que era um mês mais bonito. Seu Clriáudio, muito correto, não fez a vontade dela. Qual teria sido o problema da minha mãe com você?

Nos últimos dos seus longos trinta e um dias, achávamos que poderia ser o último dela também. Mas foi forte. Não quis nos deixar na mesma data de nascimento do filho caçula, nem tampouco no dia primeiro do mês preferido. Escolheu dia 02 de setembro e assim partiu, contrariando-o, a seu contragosto.

Eis que chegamos a 2021: hoje, o quarto dos seus dias e o motivo que me trouxe até aqui, essa pequena crônica. Último da Julie, July, Jully. Nunca chegamos a um consenso sobe como seria a grafia do seu nome, mas a pronúncia variava entre Juli e Djuli, apesar do Márcio a chamá-la às de vezes de “Djuli-Djulai”. Nossa pequena mascote, tão querida e amada, companheira da minha mãe, grude do meu pai, agora terá seu descanso merecido. E eu, mais um motivo para continuar te desgostando, disgosto.

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Daniela Zanutto
Ninho de Escritores

Meus textos falam sobre o feminino e as suas implicações de uma maneira muito pessoal.